Memórias. Brandão Raul

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Memórias - Brandão Raul

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agua. Outros virão tambem sentar-se no banco de pedra… Só me resta a tua mão querida, que a meu lado segura a minha mão. Os mortos chamam por nós cada vez mais alto… Olho para ti e os teus primeiros cabellos brancos fazem-me chorar.

Setembro de 1910.

      Hoje acordei com este grito: eu não soube fazer uso da vida!

      O que me pesa é a inutilidade da vida. Agarro-me a um sonho; desfaz-se-me nas mãos; agarro-me a uma mentira e sempre a mesma voz me repete: – É inutil! é inutil!

      A aquiescencia, o sorriso: – pois sim… pois sim… – a necessidade de transigir, o preceito, a lei, fizeram de mim este sêr inutil, que não sabe viver e que já agora não pode viver. Não grito de desespero porque nem de desespero sou capaz.

      A vida antiga tinha raizes, talvez a vida futura as venha a ter. A nossa epocha é horrivel porque já não cremos – e não cremos ainda. O passado desapareceu, de futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós, sem tecto, entre ruinas, á espera…

      Não entendo nada da vida. Cada dia que avança entendo menos da vida. Contudo ha horas, as horas perdidas – e só essas – que queria tornar a viver e a perder.

      Deus, a vida, os grandes problemas, não são os philosophos que os resolvem, são os pobres vivendo. O resto é engenho e mais nada. As coisas bellas reduzem-se a meia duzia: o tecto que me cobre, o lume que me aquece, o pão que como, a estôpa e a luz.

      Detesto a acção. A acção mete-me medo. De dia pódo as minhas arvores, á noite sonho. Sinto Deus – toco-o. Deus é muito mais simples do que imaginas. Rodeia-me – não o sei explicar. Terra, mortos, uma poeira de mortos que se ergue em tempestades, e esta mão que me prende e sustenta e que tanta força tem…

      Como em ti, ha em mim varias camadas de mortos não sei até que profundidade. Ás vezes convoco-os, outras são elles, com a voz tão sumida que mal a distingo, que desatam a falar. Preciso da noite eterna: só num silencio mais profundo ainda, conto ouvil-os a todos.

      Nunca os meus me chamaram tão alto. Sentam-se a meu lado. Rodeiam-me, e pouco a pouco o circulo da minha vida restringe-se a um ponto – a cova.

      Teimo: ha uma acção interior, a dos mortos, ha uma acção exterior, a da alma. A inteligencia é exterior e universal e faz-nos vibrar a todos d'uma maneira diferente. Destas duas acções resulta o conflicto tragico da vida. O homem agita-se, debate-se, declama, imaginando que constroe e se impõe – mas é impelido pela alma universal, na meia duzia de coisas essenciaes á Vida, ou obedece apenas ao impulso incessante dos mortos.

      A minha alegria em velho consistiria em ter aqui meu pae para falar com elle. Não é só saudade que sinto: é uma impressão physica. Agora é que acharia encanto até ás lagrimas em termos a mesma idade, conversarmos ao pé do lume e morrermos ao mesmo tempo…

Fevereiro de 1918.

      Isso que ahi fica não são memorias alinhadas. Não teem essa pretensão. São notas, conversas colhidas a esmo, dois traços sobre um acontecimento – e mais nada. Diante da fita que a meus olhos absortos se desenrolou, interessou-me a côr, um aspecto, uma linha, um quadro, uma figura, e fixei-os logo no canhenho que sempre me acompanha. Sou um mero espectador da vida, que não tenta explical-a. Não afirmo nem nego. Ha muito que fujo de julgar os homens, e, a cada hora que passa, a vida me parece ou muito complicada e misteriosa ou muito simples e profunda. Não aprendo até morrer – desaprendo até morrer. Não sei nada, não sei nada, e saio d'este mundo com a convicção de que não é a razão nem a verdade que nos guiam: só a paixão e a chimera nos levam a resoluções definitivas. O papel dos doidos é de primeira importancia neste triste planeta, embora depois os outros tentem corrigil-o e canalisal-o… Tambem entendo que é tão dificil asseverar a exactidão de um facto como julgar um homem com justiça. Todos os dias mudamos de opinião, todos os dias somos empurrados para leguas de distancia por uma coisa phrenetica, que nos leva não sei para onde. Succede sempre que, passados mezes sobre o que escrevo – eu proprio duvido e hesito. Sinto que não me pertenço… É por isso que não condemno nem explico nada, e fujo até de descer dentro de mim proprio, para não reconhecer com espanto que sou absurdo – para não ter de discriminar até que ponto creio ou não creio, e de verificar o que me pertence e o que pertence aos mortos. De resto isto de ter opiniões não é facil. Sempre que me dei a esse luxo, fui forçado a reconhecer que eram falsas ou erroneas. Sou talvez uma arvore que cresce á sua vontade, pernada para aqui, pernada para acolá, á chuva e ao vento. Não admitto poda. Perco horas com inutilidades, e passo alheado e frio diante do que os outros contemplam extasiados. Admiro, por exemplo, muito mais, perdoem-me, a vida ignorada do meu visinho, o senhor Crasto, que morreu de oitenta annos, curvado, a lavrar a terra, do que a do senhor Hintze Ribeiro, que considero inutil e destituida de toda a belleza.

      Por isso, repito, muitas folhas destes canhenhos serão mal interpretadas, talvez alguns tipos falsos. Só vemos mascaras, só lidamos com phantasmas, e ninguem, por mais que queira, se livra de paixões. No que o leitor deve acreditar é na sinceridade com que na ocasião as escrevi. Poderão objectar-me: – Então com que destino publico tantas paginas desalinhadas, de que eu proprio sou o primeiro a duvidar? É que ellas ajudam a reconstituir a atmosphera d'uma epocha; são, como dizia um grande espirito, o lixo da historia. Ensinam e elucidam. Foi sempre com a legenda que se construiu a vida. Sei perfeitamente que a historia viva tanto se faz com a verdade como com a mentira – se não se faz mais com a mentira do que com a verdade. Para gerar um acontecimento é preciso crear-lhe primeiro a atmosphera propicia. «Algumas palavras sob caricaturas grosseiras dispersas pelos campos, formaram uma lenda na imaginação popular, concernente ao rei, á rainha, ao conde de Artois, a madame Lamballe, ao pacto da fome, aos vampiros que sugam o sangue do povo, etc. Dessa lenda, que elle acha util, sahiu a grande revolução» – diz um historiador. A gente nunca sabe ao certo se da infamia poderão nascer coisas bellas… A mentira, o boato, o que se diz ao ouvido, o que se deturpa, e que tanta força tem, a meada de odio, de ambição e de interesses, que não cabe na historia com H grande, tem o seu logar n'um livro como este de memorias despretenciosas. Eis uma razão. Tenho outra ainda: torno a vêr e a ouvir alguns mortos. Recordo, o que é necessario a quem cada vez mais se isola com o seu sonho e as suas arvores. Isto aquece quasi tanto os primeiros annos da minha velhice, como o lume que arde até junho na lareira d'esta casa1.

      Cantareira, Foz do Douro – 1918.

      ALGUMAS FIGURAS

Janeiro – 1900.

      Urbano de Castro, com um olho tôrto e um chapelinho afadistado, na aparencia reservado e sardonico, sae-se encantador na intimidade. Os seus amigos adoram-no, o Camara, o Schwalbach, a antiga roda do Correio da Manhã. Trouxe para o jornalismo uma grande leitura de classicos – conhece muito a lingua – e uma forma ironica e precisa: em meia duzia de linhas incisivas deixa o adversario a sangrar. Os politicos temem-no tanto, que uma das condições impostas pelo José Luciano, quando do pacto com o Hintze, foi que o Urbano terminasse na Tarde com o Espirito de S. Ex.a.

      Eis algumas maximas de Urbano de Castro:

      – A paciencia é uma virtude de capote e lenço.

      – Quanto mais leve é a cabeça da mulher, mais pesada é a do marido.

      – Os homens publicos são como os papeis de credito – o que hoje tem uma alta cotação, amanhã não vale, e inversamente.

      – Quando tiveres muitos argumentos, não empregues senão os melhores. Quando não tiveres nenhum, emprega todos.

      – A paternidade é, muitas vezes, um rotulo. A garrafa é a mesma, mas o vinho é outro.

      – Viuva

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Estas Memorias devem formar quatro volumes: – 2.º vol. – Os bastidores da monarchia. Vida literaria. Theatro por dentro; 3.º vol. – A Republica. O comercio e a finança. Jornaes e jornalistas; 4.º vol. – A Republica e os seus homens. Vida militar.