Memórias. Brandão Raul

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Memórias - Brandão Raul

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style="font-size:15px;">      E os olhos enchem-se-lhe de lagrimas, arrasta a perna apegado á bengala, e sacode a cabelleira branca. Parece um trapo ameigado, mas resistente ainda: – Arre bandidos!

      De repente, sem transição, põe-se a rir:

      – Sabe de que me rio? Lembrou-me o Camillo, que tinha uma lingua viperina e dizia mal de toda a gente. Um dia em Seide falei-lhe n'este e naquelle, disse mal de todos. Por fim: – Sempre me refugio em Victor Hugo, para ver se você tambem diz mal d'elle…

      E o mestre:

      – Esse velho não era nada tolo!

      Ri-se. Depois fica outra vez triste:

      – Aquellas paginas de Hugo quando o avô vê entrar o neto ferido pela porta dentro!

*

      O Fialho descrevendo o Cardia, esse rapaz ingenuo, insinuante e espontaneo, que aos dezanove annos se lembra de estourar o coração com uma bala, por causa d'uma reles cantora de quarenta e dous annos – o Fialho diz:

      – …era isto e aquillo e uma mão enorme atirada p'ra aqui e p'ra acolá a toda a gente, apertando a nossa.

      O que nunca mais me esquece são aquelles olhos tristes e a bocca moça sempre a sorrir!..

Fevereiro – 1904.

      Hoje almoço em casa do Schwalbach com o Bulhão Pato, o Camara, João Chagas, Antonio Bandeira, etc. O Bulhão Pato é um homensinho secco e resistente, de cabeleira e pera branca – miniatura do alentado Pato caçador que todos nós imaginamos ao ler-lhe algumas paginas. Parte no dia 20 para S. Miguel, de passeio… Quando morrer desaparece com elle toda uma epocha: – Meu rapaz podes ter lido todos os philosophos, que se não tiveres sentimento… Minha mulher, uma velhinha lá fica… Não vae comigo, porque recolhemos em casa uma pequena pobre, pobrissima, e queremos-lhe como se fosse nossa filha. Sentamol-a á nossa meza… Bem sei que ha por ahi uns moços que dizem mal de mim. Não me importo. Quando vejo um rapaz de talento abro-lhe logo os braços.

      No fim do almoço, beija a mão ás senhoras. Conviveu com o Herculano, ouviu-lhe dizer: – Isto dá vontade de morrer! «Que faria – accrescenta – se vivesse hoje!» – O Conservatorio lembra-lhe o Palmeirim – «que foi da minha creação» – É simpathico, vivo e cheira a outros tempos: conserva, como o linho guardado no fundo d'um armario, o perfume da maçã. E que contraste com os outros, com o Chagas, com o Schwalbach, sempre aflicto e sempre despreocupado, com o Antonio Bandeira, que, sob uma aparencia futil, é pratico como o diabo, e que conta que foi uma noite em Roma, com alguns portugueses, mulheres e guitarras, bater o fado para as ruinas do Colyseo! Depois, por blague, sustenta com o Chagas, que ninguem devia ter mais de duzentas e cincoenta grammas de principios.

Março – 1904.

      Encontrei hoje o Marcellino Mesquita: ventas largas, marcas de bexigas, barba com muitas brancas aparada rente, chapeu desabado, capinha curta e olho vivo. Tipo crestado do sol, materialista e secco.

      – A gente quando chega a certa edade tem de se isolar para não viver n'uma perpetua irritação. Olhem agora se eu encontrava o Pequito ministro, o Pequito de quem a gente fazia troça em rapaz! E muitos outros, que aos quarenta annos começam a desafinar-nos os nervos… Vivo no Cartaxo, n'um descampado: a quinta fica entre duas estradas. Não passa lá ninguem… Leio, fumo, e trabalho. Tinha um moinho; primeiro acrescentei-lhe uma cozinha, depois um quarto: agora tenho lá uma casa. E já não posso viver sem o ruido das mós. O meu quarto fica mesmo por cima. D'aqui a oito dias, com as macieiras em flôr, aquillo é adoravel…

Abril – 1903.

      Vi o Marianno nas camaras. É um cadaver, com uma sobrecasaca riquissima de gola de veludo. Nunca phisionomia exprimiu maior cansaço, indiferença ou desprezo, a palpebra cahida, o olhar vazio de expressão. – Que me importa! que me importa!.. – Parece um morto, farto de sofrimento e de goso, e, sob aquella apparencia de sceptico raros se magoam como elle. Toda a vida tem sido ludibriado. Contam que a mulher passa horas a descompol-o. Elle, sentado, escreve tiras e tiras de papel, a tarefa do jornal, sem dizer palavra nem levantar a cabeça. D'uma vez chamou-lhe tudo quanto lhe veio á bocca, e elle inalteravel, curvado sobre os linguados, sem lhe dizer palavra… Por fim ella, desesperada, berrou-lhe:

      – És um estupido!

      Elle então parou, ergueu a cabeça, e muito calmo:

      – Teem-me chamado tudo, mas estupido é a primeira vez!

      E continuou a escrever.

      Por fóra uma aparencia de sceptico, por dentro uma sensibilidade enorme. Anda sempre metido em complicações e negocios, em caminhos de ferro, em pedaços de Africa, bahia de Lobito, etc., e afinal não passa d'um sonhador que tem as propriedades de Azeitão hipothecadas em quatorze contos de reis.

Setembro – 1903.

      O Antonio José de Freitas, homem de lettras mediocre, é um conversador admiravel. Se conseguisse escrever como fala, e désse á prosa aquella vida que dá á palavra, seria um grande escriptor. Pequeno, branco, na ponta dos pés, sempre a segurar as lunetas, todo elle nervos:

      – Dei-me muito com o Castello-Melhor. Um dia começou a imaginar que estava pobre, porque no Banco de Portugal lhe não quizeram, como sempre se fez, descontar uma lettra só com o nome d'elle. Disse ao Barros Gomes: – Vae beber da merda! – E sahiu furioso. D'ahi começou a imaginar que tinha cahido na pobreza e alugou o jardim para o circo Whytoine. Uma vez sahi com elle d'um baile pela madrugada e acompanhei-o a casa. – Sobe. – Tenho ainda que escrever para o Brazil… – Insistiu, subi – e eil-o a clamar no quarto: – Que diriam meus avós se vissem alli o circo e os palhaços!.. – Estava desesperado. Descompul-o.

      Passaram-se annos e morreu de repente. Vestimol-o n'aquelle mesmo quarto, e, altas horas da noite, ouvimos, de repente, um clamor: era o circo Whytoine que ardia. E eu assisti ao espectaculo do cadaver, iluminado pelo clarão do incendio, alli onde o ouvira evocar com desespero os seus mortos. Foi tudo ao enterro. O povo abria alas, e quando chegamos ao cemiterio e quizemos pegar no caixão, veio de roldão uma chusma de cocheiros e vadios, que nol-o arrancaram das mãos, e, erguendo-o no alto dos braços, levaram-no até á cova…

*

      – O Eça usou toda a vida bentinhos ao pescoço. Vi-lhos eu, que dormi por diferentes vezes com elle no mesmo quarto…

*

      Depois fala no Resende:

      – Se vivesse era decerto o chefe do partido conservador. Que homem encantador, polido e sceptico! E tinha uma poderosa ascendencia magnetica sobre nós todos. O medico, já quando elle estava muito mal, recomendou-lhe ares do mar. Passeava n'um bote no Tejo. Umas vezes ia eu com elle, outras o Soveral, e levavamos-lhe botijas com agua quente, porque sentia sempre um frio mortal. Estou a ver o Soveral, com uma botija em cada mão. O Rabecão, um jornal de caricaturas do tempo, disse que nós iamos emborrachar todas as noites para o rio. Muito nos rimos… Pois o Resende, atheu toda a vida, morreu como um crente.

      Foi elle que se esmurrou com o Eça n'uma das piramides do Egypto. Nessa viagem ouviram ambos missa no tumulo de Jesus, em Jerusalem. O Eça cahiu logo de joelhos; quando levantou a cabeça para ver o quadro, dois ou trez mil peregrinos tinham como elle ajoelhado sob o mesmo impulso irresistivel: só a seu lado, de badine e sobretudo no braço, se conservava de pé, sem perder a serenidade nem a linha, um unico homem: o Resende.

*

      Os vencidos da vida, depois que se juntaram diziam mal uns dos outros. Não se podiam ver.

Março – 1900.

      Ha

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