Memórias. Brandão Raul

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Memórias - Brandão Raul

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continuamos a passear de cá para lá, e o senhor Junqueiro a prégar a piedade e o amor…

Março – 1903.

      Fialho não é este janota de palio rico, com uma joia tão grande que parece falsa na gravata de veludo. Fialho era outro estranho tipo, intratavel e pobre, com o pêlo ralo e a bocca enorme cheia de sarcasmo. Um principe de gabinardo, que fazia cahir as peças do alto do galinheiro, a um gesto seu irrespeitoso. Seguia-o a malta atonita de matulas suspeitos e jornalistas de ocasião, que deslumbrou de sonho e atascou em sonho. – Fialho! Fialho!.. – Esses aplaudiram-no e amaram-no… Esquecidos do frio e da pobreza, não despregavam os olhos d'aquelle sonho desconforme. – Fialho! Fialho!.. – Depois sumia-se n'um terceiro andar, ou procurava os pobres que não pedem: só a mão sae da noite e implora. Havia uma velha – nunca mais me esquece – alli á porta do Monte Pio, que fazia parte do muro alto e espesso, e a quem elle, ao dar-lhe esmola, lhe afagava a cabeça… Depois, amargo, feroz, insuportavel, eil-o tornava com sarcasmos, transtornando as figuras decorativas, cheias de veneras, que á sua voz desatavam ás cambalhotas como palhaços. Vi-o exasperado, vi-o atordoado de phrases, como quem quer fugir ao proprio phantasma. Vi-o mergulhar n'uma absorpção dolorosa, e desaparecer na noite em correrias que duravam até de manhã pelos bairros escusos ou pelas azinhagas de crime, n'um debate perpetuo de que sahia livido, exhausto, e com a mascara transtornada. Este que fala do seu vinho: – Livros?.. O que eu trato de editar é um vinhinho branco lá de Cuba… – este, que vem, de quando em quando, a Lisboa deslumbrar-nos com um novo e horrivel fato, é outro Fialho, que talvez tenha saudades d'essa vida absurda de outros tempos…

      Fialho! Fialho!.. Pronuncio este nome e diante de mim desfila o assombro, pamphletos, a obscenidade e o genio – farrapos arrancados a ferro e tão vivos que mal ouso tocar-lhes – o estoiro d'uma bexiga d'entrudo – ironia e esgares. E logo gritos! e agora gritos!.. Ouço a dor, sinto a dor, sinto-a sempre atravez da forma imprevista, d'uma audacia e d'um rithmo incomparavel, escorrendo sonho, aflição, miseria, sinto-a até nos impetos de máo gosto, nos pontapés aos leitores surprehendidos e irritados. Está aqui diante de mim aquella bocca enorme, aquella figura de gabinardo e chapeu molle que nas noites de tristeza e abandono me dizia: – O que eu sofri! o que eu sofri!.. – Vejo-o sempre invejar o barqueiro louro e sardento, de que fala nos Gatos, bello como um ephebo á prôa do seu barco. – Como eu queria ter saude e ser forte! – Deu-lhe Deus o mais rico quinhão que imaginar se pode, a lingua incomparavel para exprimir a chimera e a dor, e, esse macaco sem fé, esbanjou-a com o mais absoluto impudor: serviu-lhe para a chacota. Transtornou tudo, engrandeceu tudo, riu-se de tudo. As descripções perderam a proporção, as figuras a realidade, transformadas em figuras de dor ou de grotesco; a propria cidade resurgiu a uma tinta livida de antemanhã, com a casaria a escorrer vicio e aspectos tetricos… É isto sim, mas isto creou-o elle de pobreza e desespero, creou-o de gritos que nunca ninguem lhe ouviu. – E maior! ficou maior! A sua obra só tem outra que se lhe compare, a de Camillo. Exigem-lhe um livro harmonico —Os cavadores. Porque é que toda a gente reclama dos outros aquillo de que elles são incapazes? A obra de Fialho não podia ser senão esta, aos arrancos e enorme. Fialho via os pormenores atravez d'uma lente, e deturpava tudo, deformava tudo, dando genio á propria obscenidade. Nunca conheceu Barjona, nunca viu Barjona, e, com duas ou tres anecdotas, creou uma figura com um relevo que falta ao mediocre Barjona da realidade. Precisou sempre de se exagerar para se encontrar. Sacrificou o seu melhor amigo a um dito, é certo, mas começou por se sacrificar a si próprio. Foi sempre o primeiro a sofrer. Houve tempo em que alguem o definiu um doente com inveja das doenças dos outros… Desatou então a gargalhar com lagrimas nos olhos. Perdeu o pé. Arrancou as azas disformes ao Sonho e rojou-as com maldade no enxurro. – Encharcou-as de lama e empoou-as de estrellas… O vestido ficou mas era o d'um espectro… Não nos podemos medir todos pela mesma craveira. Fialho tem de tudo na alma: a casa de hospedes, a existencia reles d'estudante, a pobreza, as mil saburras, os pequenos nadas que gastam, desgastam e transformam, e uma alma vibratil, um feixe de nervos (capaz de tempestades que se domam com uma palavra) ligado a uma enchente de sonho e a um orgulho doentio, como os que sentem dentro de si, e o suportam, um mundo desconhecido e nunca dantes navegado. Fialho, se o virassem do avêsso, escorria ternura… É tambem um timido capaz de todas as audacias, e que sae da doença e do isolamento com desespero e escarneo. Esta figura tão conhecida de todos nós, não é a exacta expressão da sua alma. Ainda hoje ninguem se entende…

*

      – O que eu sofri! – dizia elle. – Tiveram-me preso oito annos n'uma botica alli na Bemposta, ao pé da Escola do Exercito, na idade em que queria viver. Estragaram-me a vida, encheram-me de desespero. Quando me soltaram não imagina a minha alegria! Podia ter sido outro… Ter saude, ser forte!.. O que eu sofri! D'uma vez, no Reporter, o Martins mandou-me escrever um artigo sobre uma kermesse de fidalgas. Fui e fiz uma troça, e elle rasgou-me os linguados na cara. Para me vingar, tirando um bocado ás noites, escrevi um artigo formidavel para publicar em folheto. Era na occasião em que essas peidorreiras arranjavam um bazar para os pobres, que rendeu oitocentos mil reis. Ora eu descobri por acaso um gallego, que se juntava com outros e tiravam todas as semanas meio dia de ganho, para irem ao domingo ao hospital dar cigarros aos doentes, penteal-os, cortar-lhes as unhas, untar-lhes a cabeça com banha de porco. É um velho, de barba de passa piolho, que está sempre no largo de Camões. Homem de poucas falas. Tratou-me mal. Tive prompto o folheto em que comparava essas mulheres, cheias de snobismo, com adulterios e infamias, com esse santo desconhecido… Imagine… Perdi o artigo.

      E depois, falando da mulher Oliveira Martins: – Não era a mulher que convinha áquelle homem. E elle subordinava-se-lhe. Foi ella que o fez confessar á hora da morte. Contou-me o Sousa Martins que a sacudira de ao pé de si ao morrer…

*

      Fala do livro A Cloaca, um d'estes livros que se sonham e nunca se chegam a escrever:

      O primeiro capitulo está feito: é uma festa da alta sociedade no claustro da Batalha… Aproveito a epoca do Burnay e do marquez da Foz, a lucta da finança, quando o Foz tinha palacios e o Moser carro a duas parelhas. Deram-se festas esplendidas… Tenho as figuras todas, homens de negocio e jornalistas, o Mariano e o Navarro… Um dia alugam um comboio especial e vão dar uma festa no claustro da Batalha. É uma ceia formidavel, com mulheres da grande roda, politicos, literatos, e, dentro do claustro, entre a grandeza e a severidade d'aquellas pedras, caem de bebados e mijam pelos cantos, nos tumulos. O principe tambem lá está, com o conde de Maricas – fedes: no fim do banquete, á sahida, a babar-se, escreve nas paredes monumentaes esta palavra obscena: p… Os outros riem-se, as mulheres aplaudem. Fora a multidão apupa. Outro capitulo ha de ser a noite em que os jornaes apregoaram em suplemento o escandalo Foz e a sua prisão: – Foi n'essas horas – dizia a marqueza – que os cabellos se me puzeram brancos da noite para o dia.

*

      Nunca terminou outro livro A Quebra, que chegou a trezentas paginas impressas, no editor Costa Santos. Tinha capitulos admiraveis. Acabou por o inutilisar: – A minha dificuldade é a falta de proporções. Perco-me n'um incidente, e quando mal me percato estou em quatrocentas paginas. – Sei tambem que escreveu alguns capitulos d'Os Cavadores. Talvez d'Os Ceifeiros pertencessem a esse livro, em que elle queria pegar no homem do campo e leval-o, sempre explorado, desde o baptismo até á morte…

*

      Inventou este nome para o conde de Arnoso, a rainha Draga, e diz do retrato a oleo que o Columbano lhe pintou:

      – O Columbano é tão cortezão que lhe poz um velho olho do Eça de Queiroz.

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      Contemplando o cadaver do Cardia:

      – Só aos quarenta anos é que se sabe o que é isto!

      Isto é a morte, á qual tem horror, assim como á velhice.

*

      E falando a proposito do Cardia:

      – Eu tambem sou assim… Ha dias em que ninguem me arranca seja o que fôr da cabeça.

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