Memórias. Brandão Raul

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Memórias - Brandão Raul

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nem ascendencias nobres. Fez a sua vida ali no «Martinho», vivia de noite e era um blageur incorrigivel, e apezar de valer bem os seis milhões de portugueses que existem sobre esse solo, a Monarquia, o Paço, os conselheiros, não lhe achavam qualidades para triunfar nessa sociedade formalisada e cheia de convencionalismos. Está explicado o Fialho dos Gatos– foi a revolta. Meteu-lhes medo – oh sim, um medo terrivel com as suas blagues sangrentas – fazia-os passar de largo, mas ainda mais se afastou do ancien régime. Entre os republicanos, onde se lançou de alma e coração, sentiu-se depois desconsiderado. O Fialho continuava a ser… o blageur. Nunca lhe deram um cargo de confiança. Que pena teve o Fialho de não ficar na Comissão da subscrição nacional a quando do ultimatum!»

      E termina com esta nota inedita:

      «Sabe que o Fialho era um orador. Nunca ouviu dizer talvez que elle fizesse um discurso? Mas ouvi-lhe eu muitos, todos os dias, durante longos annos. A sua timidez invencivel nunca o deixou falar em publico apesar de, como ninguem, sentir a necessidade do aplauso. Muita vez me disse que desejaria ser actor, ser um grande actor, para ouvir bem de perto o som das palmas com que o saudariam, para viver intensamente, ruidosamente, uma grande hora de triunfo. Tinha coisas o Fialho… Registe esta nota curiosa pois muito poucos a sabem: era soberbo, orando alucinado para um auditorio de tres amigos intimos no alto da Avenida, ou noite alta, á beira do Tejo.»

*

      Á figura que se senta ao pé de mim falta-lhe talvez a rigidez das estatuas. O gabinardo, reparem, está amachucado e encardido, a phisionomia retrae-se no escuro e só a bocca se salienta, enorme e prestes a escorraçar-nos com gritos e apupos. Atravessou a vida: foi injusto, foi cruel por vezes, foi amargo. Desatou a rir para não chorar. Atordoou-se com sarcasmos e phrases. Foi incoherente. Obedeceu ao impulso. Não se pôde furtar a sentimentos que veem do fundo dos fundos e nos deixam prostrados, reclamando da morte que nos apavora – enfim! enfim! – o primeiro dia de descanço bem ganho, ao termo desta discussão que nunca cessa e em que nos despedaçamos, sem nos comprehendermos a nós proprios quantos mais aos outros… Toda a sua alma, que deixou fragmentada em varias figuras, em todas as paginas dos seus livros, nos retratos, nos tipos, nas paisagens, no Manuel, em Guilherme de Azevedo ou na manhã do Tejo, se condensa enfim n'esta bocca amarga capaz ainda de nos fulminar de colera ou de acusar bem alto a vida que lhe foi impiedosa… É assim que te vejo ao pé de mim, com detrictos, escorrencias, lama, mas tão grande, tão vivo, tão humano, que para sintetisar a tua vida, só me servem as palavras com que um espectador ilustre sauda o Hamlet no fim da representação: – Boas noites, meu principe, és um homem, o homem e todo o homem!

4 de Janeiro – 1908.

      Morreu ante hontem d'albuminuria o pobre D. João da Camara. Tinha feito annos no dia 27. Conheci-o sempre, até nos maiores frios, de casaco d'alpaca, a sorrir… Antes de acabar sahiu do torpôr e, em dois acessos de delirio, descreveu o fim do mundo com terror e espanto. Depois rezou, disse versos seus, e ficou, n'um ultimo suspiro. Remexeram-lhe nos papeis e nos bolsos: só lhe encontraram recortes de jornaes, anuncios de desgraçados pedindo esmola.

      Mezes depois ainda os pobres o procuravam nos sitios do costume: – O senhor D. João? o senhor D. João? – Morreu. – Morreu! morreu!.. – E partiam a chorar.

      Agora é que eu sinto todo o encanto d'esse homem falando baixinho, a olhar a gente por cima das lunetas. Andou mal vestido. Não soube o valor do dinheiro. Desceu aos desgraçados com uma ternura e uma simplicidade de fidalgo e de santo. Nos ultimos quatro annos ganhou alguns tão vivo, tão humano, que para sintetisar a contos de reis: deu tudo, levaram-lhe tudo. Até de madrugada o procuravam para lhe pedirem dinheiro emprestado. E nunca o ouvi queixar-se, nem dizer mal de ninguem. Foi um poeta e um santo. Deixa, alem de algumas obras admiraveis, uma peça incompleta, com poucas scenas escriptas —As comadres de Panoia, e talvez se lhe encontrem tambem apontamentos de outra em que tanto falou e em que tanto sonhou —O Sermão da Montanha.

18 de Março – 1900.

      Faz hoje annos que morreu Antonio Nobre. Foi uma figura inconfundivel de poeta. Por mim nunca encontrei tambem rapaz mais lindo. Um pouco afectado talvez… Em pequeno ia com Eduardo Caminha enterrar os seus versos no jardim solitario do Palacio, e pedia, com os olhos limpidos e sofregos, uma Biblia para repousar a cabeça quando o levassem no caixão… Estou a ve-lo, com uma camisola de pescador, saltar pela janella da casa á beira rio, de Mattosinhos, onde Alberto d'Oliveira já imperava, esse mesmo Alberto d'Oliveira, esperto e tão dominador, que, quando entrava em casa dos outros, começava por os convencer a desarrumar os móveis, para os arrumar de novo a seu modo… Antonio Nobre usava uma abotoadura de cabeças de pregos e sorria com um modo e um ar de ternura e desdem. Fugiam d'elle antes de publicar o ; os poetas do seu tempo odiaram-no depois de publicar o . Ser diferente dos outros é já uma desgraça; ser superior aos outros é uma desgraça muito maior. Viveu efectivamente isolado. No concurso para consul quizeram reprová-lo: foi preciso que Alberto d'Oliveira explicasse ao jury quem era o poeta Antonio Nobre. Não pôde formar-se em Coimbra, e até os seus amigos mais intimos lhe fugiram. Entrou na morte como tinha vivido – só. Até Alberto d'Oliveira teve de interromper uma amizade de irmão quando se encontrou diante d'este dilema: ou deixar-se dominar por elle, que o tratava como uma creança, ou feril-o em pleno coração: – A nossa amizade é de tal ordem que não admite que lhe desçam dois ou trez pontos á craveira. Ou mante-la ou quebra-la. – Quebrou-a. O ilustre escriptor possue d'esse tempo um caixão enorme, tão pesado como o que levou o poeta para a cova, com as cartas afectadas e vivas de Antonio Nobre, as cartas que tem obrigação de publicar, com um prefacio que só elle pode e deve escrever.

      Digamol-o, digamol-o… No fundo detestaram-no, detestaram-no todos. Não lhe poderam perdoar a impertinencia, o desdem, o genio. Era um sêr diferente. Não agradava a ninguem. Só as mulheres o amaram. Era um Poeta. Desconheceu a vida pratica. Tinha a consciencia do seu valor, e uma superioridade que se não podia aturar. Estavamos todos mortos por nos desfazermos d'esse ser aparte, d'esse eterno consul sem consulado, d'esse estudante de Coimbra que os lentes reprovavam e que nos fazia sombra. Mas debalde o arredamos: houve uma coisa nova que passou no mundo e que ficou no mundo – que nos ficou na alma…

      Agora estamos todos apaziguados, todos podemos esquecer a superioridade, a afectação e o desdem infantil de Antonio Nobre.

      Foi para a cova completar trinta e tres annos n'um dia de chuva como este, frio e sujo, o poeta insolente como um principe e adoravel como uma creança. Quantos estavam alli á beira do tumulo? Meia duzia escassa, o Frei, o Justino, o Eduardo de Souza, eu – e quem mais? quantos mais? Os jornaes deram a sua morte em duas rapidas linhas. Respirou-se.

      Hoje é um dos poetas portuguezes com mais admiradores. É um poeta de simpathia. Nunca teve sorte senão depois de morto. Porquê? Porque não misturou, como nós todos, o sonho com a vida pratica. Ao contrario, raros homens terão posto tão de acordo a vida com o sonho. Fez mais: suprimiu a vida. Correu o globo e só a si proprio se encontrou. Viu o mundo e nunca assistiu a outro drama que não fosse o da sua alma. E poentes, arvores, estrellas ou pedras, entraram-lhe no coração como espadas. Nenhum outro exprimiu d'uma forma tão sua o universo. Que universo dirás? O meu? o teu?.. Não, o que elle descobriu, scismando como um navegador, á prôa do seu barco… Por isso nunca hão-de faltar sonhadores que evoquem essa singular figura de poeta, que uma vez atravessou a terra, soluçou, monologou como Hamlet, e sumiu-se logo no sepulchro.

30 de Janeiro – 1911.

      Janota e coçado, com uma flor na botoeira e a fumar um charuto de dez reis, ahi vae o poeta Gomes Leal. Quem não viu n'outro tempo este homem extraordinario, não conheceu um verdadeiro, um authentico poeta satanico. Passou nas ruas de chapéo alto, falando com intimidade ás estrellas e tocando no céo com as guias do bigode. Escreveu as paginas das Claridades do Sul, da Traição e do Anti-Christo. Viveu alheado, como é indispensavel a quem convive todo o dia, tu cá, tu lá, com o sonho. Cantou a plebe, destruiu os deuses, arremessou sarcasmos aos banqueiros, satirisou o grotesco,

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