Memórias. Brandão Raul

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Memórias - Brandão Raul

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Junqueiro encontra-o mergulhado na dolorosa tinta do crepusculo, com a pala com que escrevia sobre os olhos, absorto, calado, desesperado, o rosto marcado de dedadas, «esboçado n'uma argila côr de mel», segundo o retrato de Ricardo Jorge. Eu tinha-lhe medo… O poeta tenta arrancal-o ao negrume que o envolve: desenrola theorias, explicações, argumentos; ataca-o a fundo, persuade-o talvez… Já o julga abalado e convertido, quando d'essa figura só osso e dor, saem emfim estas palavras ironicas:

      … – Sim, sim, Junqueiro, você convencia-me se eu não tivesse ainda no estomago, desde o almoço, tres bolinhos de bacalhau, que me estão aqui como tres Voltaires.

Março – 1904.

      Veiu a Lisboa acompanhar, por solidariedade, os lavradores do Douro, o poeta Guerra Junqueiro. É outro homem, que perdeu talvez em exterioridades mas ganhou em funda emoção. Tendo-se-lhe um dia deparado universaes interrogações no caminho; tendo encontrado frente a frente, ao meio da vida, idéas abaladoras, que só o homem de genio pode encarar sem o pavor e o deslumbramento que o grande mistério comunica – as raizes do universo – elle mudou de rumo, tão simplesmente como se praticasse o acto mais banal da existencia. Sendo já um dos maiores poetas da Europa – quiz ser tambem um santo… Durante annos procurou como Fausto o segredo da vida no fundo dos laboratorios. E n'outra phase do seu espirito decorativo tendo entrevisto, pelo poder do genio, novas veredas a tentar, seguiu-as, fazendo experiencias que a sciencia d'hoje plenamente confirma.

      Guerra Junqueiro está na mesma: alguns fios brancos a mais na grande barba de santo, começo de calva amarelada no alto da cabeça, chapéo baixo, uma simplicidade de trajo que vae bem com a simplicidade verdadeira ou ficticia da sua alma. E sobre isto os olhos terriveis que nos fitam e nos adivinham até ao fundo. A conversa é prodigio que evoca, ilumina, toca em todos os problemas da vida, dando-lhes uma grandeza e novos aspectos que entontecem.

      Fala-se a proposito de um livro, e elle diz, não palidamente, nem decerto com as inexactidões com que reproduzo, o seguinte:

      – É um livro interessante. O autor conseguiu deixar falar a parte de inconsciente que cada um de nós traz comsigo… Porque, meu amigo, a porção de infinito que cabe a cada homem é exactamente a mesma. O camiseiro alli defronte e um homem de genio teem na alma identico quinhão. Sómente o camiseiro não consegue encontral-a nem pode exteriorisal-a. Porque? Porque só pensa em camisas. O homem é o universo reduzido… Que cada um pudesse deixar-se narrar – e teriamos a mais maravilhosa historia do mundo!..

      E como incidentemente se refira á sciencia, eil-o que se desvia por outro esplendido caminho:

      – As ultimas descobertas modificaram completamente a sciencia. Foi um terremoto. E eu entrevi isto mesmo: ha annos que chegára ao seguinte resultado: – radiação universal e desassociação dos atomos. Fiz experiencias, que me de sciencia que não me quizeram atender. Um dia vim de proposito a Lisboa falar a Sousa Martins e expuz-lhe as minhas theorias. Ouviu-me… Quando me fui embora encolheu decerto os hombros. E no emtanto, passados annos, vejo confirmado experimentalmente tudo o que eu previra… Que quer?.. Faltavam-me como comprehende os meios de verificação. Precisava de factos.

      Cala-se um momento e depois continua:

      – Hei-de publicar, depois da Oração á luz, que sae brevemente, uma serie de memorias, com os resultados dessas experiencias. A vida – é o Amor e a Dor. Procurar as suas leis eis tudo. Seguir-se-ha a minha theoria philosophica. Adivinhei todo este terremoto que se deu ultimamente na sciencia. Hoje a materia não existe: já a definem – associação d'energias. O que é feito dos materialistas? A sciencia futura será portanto o estudo de energias. Por ultimo publicarei uma introducção á sciencia, visto que não posso escrever essa obra: seria a revisão dos trabalhos de Spencer – a tarefa de toda uma vida.

      – E tem muitos documentos?

      – Tenho tudo prompto. Necessito apenas de encontrar a fórma precisa, a fórma mathematica, para exprimir as minhas idéas.

      Incansavel. É de ferro. Pequeno e mirrado passeia horas e horas, a conversar… Não conversa – monologa.

*

      Da Barca d'Alva diz:

      A minha casa de jantar tem uma meza e cadeiras de pinho. Depois de comer, quando quero um palito, corto-o na meza.

*

      Ramalho definido por Junqueiro: – um pinheiro com uma melancia em cima.

*

      Junqueiro na redacção do «Mundo»:

      – D'aqui a pouco reparto a minha fortuna com as minhas filhas e o que me restar dou-o aos pobres.

*

      Ha outro Junqueiro de que a caricatura se apoderou, o Junqueiro do bric-á-brac. O Junqueiro que a má lingua do Porto afirma que percorre disfarçado as ruas de Hespanha, com um burro pela arreata apregoando: – Ha por ahi quem tenha louça para vender? – O Junqueiro que foi procurado um dia no hotel, em Salamanca: – Está cá o grande poeta Guerra Junqueiro? – Não conheço, – disse o porteiro. – Mas elle vem sempre para aqui. É um homem de barbas… – teimou, explicou o outro. – Esse es Guerra el antiquario!..

      Mas até no Junqueiro caricatural algumas linhas são indispensaveis para completar o retrato. Ha n'este grande homem uma mascara. Sinto uma parte que se deve ao arranjo – e que é a inferior e outra em que elle obedece á raça e que é a mais viva, a que tem raizes nos mortos. Melhor: o homem é sempre um tablado onde varios phantasmas se despedaçam. Ha mãos que nos puxam para o fundo, ha outras que nos procuram levantar cada vez mais alto. Deus nos livre de julgar os mortos!

*

      Junqueiro, de volta do Bussaco, indignado:

      – E não aparecer um doido, com um grande martelo, que deite tudo aquillo abaixo! Qualquer dia botam as arvores a terra e põem pedraria até á Pampilhosa!

Dezembro – 1907.

      Encontro-o hoje em Lisboa, emagrecido, com um velho casaco comprado n'um adelo, e muitas rugas, finas como linhas, ao canto dos olhos. E, como o José de Figueiredo lhe fale no Rodin:

      – É verdade, passei um dia inteiro com o Rodin, a explicar-lhe a sua obra. Disse-lhe: você é um grande artista, mas exactamente, como em todos os grandes artistas, a melhor parte da sua obra é inconsciente. Porque em todos nós a razão é nada, o que é grande é o inconsciente. Aquella cabeça que você tem no Luxembourg, emergindo da pedra – é assim, é aquillo… Mas falta-lhe não sei quê de simbolico que ligue a cabeça á pedra. Assim choca, é brutal. É como o Pensador, a estatua que está no Pantheon. Toda a critica franceza tem tentado explicar aquella estatua, e ainda ninguem disse as palavras necessarias. Eu lh'as digo: Aquillo não é o Pensador, nem o Pensamento: é o primeiro pensamento em cabeça de homem. Dispa você um tipo de verdadeiro pensador, Kant, o Dante, por exemplo, e encontra um corpo deformado. Porque o pensamento peza mais de que montanhas. Devora. O que você fez foi uma besta, um gorilha, um homem capaz de arrastar calháos: Pois bem: inconscientemente fez uma grande obra d'arte: o primeiro pensamento na cabeça d'homem. Esse primeiro homem athletico, ao deparar com o primeiro pensamento, essa flor abstracta, fica dominado, subjugado: cae-lhe o Atlas em cima e esmaga-o… E adeus, são horas de partir para o comboio.

*

      D. Carracida, professor de chimica biologica na Universidade de Madrid, homem ilustre e que conhece perfeitamente a literatura portugueza, diz assim de Junqueiro… (D. Carracida fala portuguez pausadamente).

      – O senhor Junqueiro, grande poeta, é um mistico… Está agora no misticismo. O senhor Junqueiro e eu passeavamos juntos no jardim de Villa do Conde, de cá para lá – e o senhor Junqueiro prégava a piedade e o amor. Uns rapazinhos acendiam balões

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