Memórias. Brandão Raul

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Memórias - Brandão Raul

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o que é sempre. Logo, mortal – é o que não é nunca.

      – Theologia – a arte de fazer comprehender aos outros aquillo que nós não entendemos.

      – De todas as armas, a mais dificil de manejar é o pau… de dois bicos.

      – Jornalista – fabricante da opinião publica. Cada um afirma que a unica genuina é a da sua lavra.

      – Se os homens de mais juizo pensarem a serio em muitos dos seus actos hão de reconhecer que não teem juizo nenhum.

      – O suicida tem para mim um lado sympathico – não se julga insubstituivel.

Junho – 1903.

      Deparo hoje com o Garrido, redondinho, baixo, de bigode grisalho e um ventre de proprietario. Nunca se altera nem perde a paciencia. Jovial? Não, triste e falando sempre baixinho. Tem ganho fortunas, tem dissipado fortunas com o mesmo ar inalteravel. Houve ocasiões em que todos os theatros do Rio representaram peças com o seu nome. Está cheio de dividas. E o seu ideal, o ideal d'esta existencia de acaso, com aflições de morte, ou dispersa pelo Brazil entre dois numeros de opereta – pan! pan! pan! – e dinheiro atirado a rodos, é um casebre no campo, duas arvores n'um retalho de horta viçosa e uma nora pingue que pingue no fundo do quintal. Paz. E não escrever uma linha.

      Um agiota não o larga. É este velhinho paternal, de cabellos brancos, que faz recados, deita as cartas ao correio e leva coiro e cabelo. Parece inofensivo. Começou a vida por creado de servir e esfolou os patrões. Afirma que o Garrido é capaz de arrancar dinheiro a um morto:

      – Este senhor Garrido dá-me cada aflição! Até me faz crear caspa!

Fevereiro – 1900.

      A paixão d'este homem é não ter um livro de geito. G… só escreveu trez folhetos, e por ahi ficou o seu talento. Espremido não deu mais nada. É no entanto uma figura epigramatica e nitida de conversador e um typo curioso de bohemio lisboeta. Dormiu nas escadas dos predios, pertenceu ao grupo que o Fialho arrastava pelas ruas até ante manhã, dispersando com elle o oiro da sua esplendida phantasia. Para essa meia duzia de bohemios improvisou o grande escriptor as suas melhores satyras. Uma noite, no café, G… aludiu á sua obra, e logo do lado o Fialho acudiu:

      – A tua obra, bem sei… Vinte e cinco cartas a vinte e cinco amigos pedindo vinte e cinco tostões emprestados.

      G… embezerrou. Mas passados minutos aproveitou uma pausa no dialogo, para perguntar com indiferença ao Fialho, que tinha ha pouco casado rico com uma prima, que gastou a vida a esperal-o no fundo da provincia:

      – O Fialho fazes favor de me dizer que horas são… no relogio do teu sogro?

Fevereiro – 1903.

      Vejo sempre diante de mim o D. João da Camara, já cansado e e asmathico, olhando por cima das lunetas, e falando baixinho com receio, uma modestia no dizer, e um medo de magoar… A barba espessa, a grenha espessa e um chapelinho pôsto ao lado, completam a figura um pouco molle. É quasi um santo. Joga e jejua. Dá tudo o que tem. Exploram-no.

      – O que me perdeu na vida foi não ter energia. Nunca me decido. – E mais baixo: – Isto vem talvez dos jesuitas que me educaram. Tive alguns condiscipulos que são homens notaveis e ninguem dá por elles.

      Vive de noite, com uns e outros, ao acaso, nos bastidores dos theatros, ou encantado com uma ceiasinha na taberna, que descobriu no Arco da Bandeira. Se encontra o Pinturas está perdido: não se largam mais. Vae sempre para casa de manhã, e a sua vida é tão aflictiva que desejaria, como o Schwalbach, que o metessem algum tempo no Limoeiro, para não pensar no dia seguinte.

      Hontem contou-me isto que é encantador:

      – Não me importava nada de ter quatorze filhos em vez de sete. São muito meus amigos. O Vicente nunca sae de casa sem me dar um beijo. Eu estou sempre a dormir… Esta manhã – estava acordado, mas fingi que dormia, quando aquelle rapagão me entrou no quarto, pé ante pé, para não me acordar, e beijou-me…

      E fica extatico.

      Ás vezes fala-me das peças que ha-de fazer, do Sermão da Montanha e de outra com tipos de sonhadores, que se alimentam de mentira e de um passado que nunca existiu, forjado ponto por ponto. Assobia-se, por exemplo, um trecho d'opera, e logo este atalha: – Bem sei é da Dinorah!… Tempos que já lá vão! O que eu vivi com Fulano e Sicrano, e as ceias que demos juntos! – Tudo ilusão! tudo sonho! Vae-se a ver nem sequer conheceram as pessoas de quem falam… Outras vezes conta-me a sua vida:

      – O que eu tenho sofrido! Tive muitos dias d'angustia… N'essa noite O Pantano cahira. Toda a gente dizia mal de mim. Nos bastidores a intriga fervia com a Lucinda á frente. Sahi do theatro a pensar no que havia de empenhar no dia seguinte. Fui para casa muito tarde. – Não haveria que pôr no prégo? – Por fim descobri uma casaca, e, ainda muito cedo, sahi com o embrulho debaixo do braço, n'um papel de jornal. O papel amolecia, a casaca rompia para fóra, e eu batia de prégo em prégo. Sete horas da manhã… Estavam todos fechados. N'um disseram-me com seccura: – Não emprestamos sobre casacas. – Fui a outro e esperei no portal que abrisse. Lembro-me como se fosse hoje. Chovia a potes. Defronte, estava uma carroça, com um cavallo branco. Era um burro pelle e osso, a cabeça metida n'uma linhagem, a comer. E eu no portal, com o embrulho já todo roto debaixo do braço, invejei aquelle cavalo!..

      Já não joga. Mas antigamente ia todos os dias para casa ás cinco horas, tendo perdido tudo: – Foi n'essas noites que imaginei as minhas melhores peças… – Cuidadosamente punha sempre de lado um tostão para o americano – e quasi sempre succedia tambem que um velho fidalgo, das suas relações, lhe pedia o tostão emprestado para um calice de vinho do Porto, que se habituara a beber ahi pelas tres da madrugada. O D. João dava-lh'o, e lá ia a pé para a Junqueira, a sonhar nas peças, sob a lufada, molhado até aos ossos, de casaco de alpaca.

Junho – 1903.

      Passei a noite em casa do Columbano, com o Raphael Bordalo Pinheiro. Durante o jantar falou sempre. Todo elle mexe, todo elle é caricatura e imprevisto: os olhos, o nariz, as mãos e até o bigode que se encrespa, desenham e imitam. – Era um homem com um ôlho assim… – E logo o ôlho se lhe envieza. Em rapaz o seu sonho era o theatro. Chegou a ter lições do Rosa pae. Está um pouco cansado. Queixa-se muito. Amua. – Ninguem faz caso de mim… – Estranha quando o não vão esperar á estação – e está sempre a chegar das Caldas e partir para as Caldas. Depois esquece-se e põe-se a rir. Depois torna: – Eu não jogo, mas lá em casa todas as noites jogam e pedem-me dinheiro emprestado. – Agora arremeda este e aquelle de quem fala. Conta que em Paris ouviu o rei dizer: – Isto aqui é uma terra, lá é uma piolheira. – E que o infante, quando lhe perguntaram: – Então em Londres que tal, com aquelles principes todos? – Mal, mal… eu sou um principe aza de mosca…

      E acaba – é nas vesperas do jantar que lhe vão oferecer no theatro D. Maria – por dizer: – Veja o senhor que desgraça a minha! Daqui a pouco não posso fazer a caricatura de ninguem!

      Efectivamente lá estavam no banquete todos os homens imponentes, os conselheiros, os politicos decorativos, a serie completa das figuras do Antonio Maria. Não faltou ninguem á chamada. E nos camarotes aplaudiram-no com delirio as lisboetas palidas de que troçou em tantas paginas de genio. Confundiram-no e arrazaram-no. Creio que foi a primeira vez que perdeu a linha.

      Gostou sempre de fazer partidas. É o Schwalbach que conta:

      – O imperador do Brazil logo que chegava ao theatro metia-se no camarote, descalçava as botas e calçava com regalo uns chinelos. Uma noite o Raphael, que estava

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