O último comboio para a liberdade. Meg Waite Clayton

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O último comboio para a liberdade - Meg Waite Clayton HARPERCOLLINS PORTUGAL

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      — O que estamos a fazer aqui? — sussurrou Žofie-Helene a Stephan. Tinham acabado de sair de um corredor que cheirava a incenso e encontraram uma fila de adultos bem vestidos que desciam umas escadas, à espera de entrar na Hofburgkapelle. Žofie fizera exatamente o que Stephan lhe ordenara, embora se recusasse a explicar porquê: Vestira roupa elegante e encontrara-se com ele na estátua de Hércules de Heldenplatz.

      — Vamos para a fila para receber a comunhão, juntamente com as pessoas que saem das galerias superiores — explicou Stephan.

      — Mas não sou católica.

      — Eu também não.

      Žofie seguiu-o até à capela. Era surpreendentemente estreita e simples, para a capela de um palácio real; uma divisão de aspeto gótico, rodeada de balcões de onde a banda tocava e o coro cantava, mas era tudo branco. Até a vidraça situada atrás do altar só estava pintada na parte superior, algo muito desequilibrado.

      Žofie aceitou um pedaço de pão asqueroso e um gole de vinho azedo.

      — Era indigesto — sussurrou a Stephan, enquanto se afastavam do altar.

      — Suponho que, na tua igreja, sirvam bolo Sacher, não é? — replicou, com um sorriso.

      As pessoas com quem tinham descido voltaram a subir as escadas, mas Stephan ocupou um lugar num extremo da capela e Žofie esperou junto dele. Quando a comunhão acabou, guiou-a até dois lugares livres situados na parte de trás. Sentaram-se à espera que a missa acabasse e ele escreveu no seu diário: «Comunhão = indigesta.»

      Por alguma razão que Žofie desconhecia, continuaram ali sentados, mesmo depois de a missa acabar. Quase todos ficaram, embora o sacerdote se fosse embora. Devolveu a atenção ao teto, à abóbada em cruzaria sem pinturas em que o peso das ogivas repousava sobre os pilares das intercessões e o impulso se transmitia para as paredes exteriores. Se estivesse com qualquer outra pessoa que não fosse Stephan, nunca teria tolerado estar sentada numa capela sem fazer absolutamente nada, mas Stephan tinha sempre uma razão para fazer as coisas.

      — Sabes porque o teto não cai? — sussurrou.

      Stephan pôs-lhe uma mão na boca. Depois, tirou-lhe os óculos, limpou-os com o cachecol e voltou a pôr-lhos. Sorriu e, depois, tocou no colar com o símbolo do infinito.

      — Na verdade, não foi um presente do meu pai — disse-lhe ela. — Era um alfinete de gravata que ganhou na escola. O meu avô mandou transformá-lo num colar para mo oferecer quando o meu pai morreu.

      Fileiras de rapazes jovens vestidos com um uniforme de marinheiro azul e branco começaram a encher o lugar e a pôr-se em fila à frente do altar. Depois de um instante de silêncio, uma voz bonita cantou do coro, a primeira nota aguda do Ave Maria de Schubert. Na voz pura daquele rapaz, as notas gotejavam ritmicamente, para baixo e depois para cima, para voltar a descer e pousar num lugar dentro de Žofie que nem ela própria sabia que existia. À voz do rapaz, seguiu-se o coro inteiro de vozes masculinas, cujo eco ricocheteava na pedra branca do teto abobadado, rodeando-a por todas direções, misturando-se na sua mente com uma equação que passara vários dias a tentar resolver, como se fizesse parte do próprio céu. Ficou ali sentada, deixando que a música enchesse os vazios entre os números e símbolos da sua mente e, depois, ficou sentada no silêncio enquanto os outros se iam embora, até restarem apenas Stephan e ela, sentados lado a lado na capela vazia, o lugar mais cheio que alguma vez vira.

      KIPFERL E CHOCOLATE QUENTE VIENENSE

      Em Michaelerplatz, à frente da Hofburgkapelle e do palácio, estava um dia brilhante, ensolarado e frio e, por todo o lado, havia panfletos e cartazes que proclamavam «Claro!» e «Com o Schuschnigg por uma Áustria livre!», ou «Vota Sim» no plebiscito que o chanceler Schuschnigg convocara para decidir se a Áustria devia continuar a ser independente da Alemanha. Nas paredes dos edifícios e nas calçadas, tinham pintado cruzes brancas da Frente da Pátria Austríaca, o partido do chanceler. As multidões e os grupos juvenis entoavam «Heil Schuschnigg», «Heil liberdade» e «Vermelho, branco, vermelho até à morte!», enquanto os outros gritavam «Heil Hitler!».

      Žofie tentava ignorá-los a todos. Tentava agarrar-se à música e à matemática que ainda se misturavam no seu interior enquanto percorria a Herrengasse com Stephan para o Café Central. Se os gritos da multidão incomodavam Stephan, não disse nada, embora não tivesse dito nada desde que começara a música na capela. Žofie supunha que aquela melodia mudara o seu mundo de palavras, tal como mudara o seu mundo de números e símbolos. Imaginava que fora por isso que se tinham tornado tão bons amigos, embora Stephan conhecesse outros há muito mais tempo do que a conhecia, porque a escrita dele era como a matemática dela num sentido que ambos entendiam, ainda que, na verdade, não tivesse sentido.

      Estavam a empurrar as portas de vidro do Café Central quando Stephan falou finalmente. Agora, tinha os olhos secos, ainda que, na capela, tivessem humedecido, o que ela imaginava que o teria envergonhado à frente dos seus amigos do café.

      — Imagina, Žofe, se eu conseguisse escrever uma coisa dessas — replicou.

      Para além da vitrina dos bolos, no outro extremo do café, os seus amigos estavam sentados em torno de duas mesas juntas do lado das estantes da imprensa, já reunidos à espera de Stephan.

      — Mas escreves peças de teatro, não música — indicou Žofie.

      Stephan deu-lhe um empurrão suave no ombro, como costumava fazer ultimamente. Žofie sabia que o fazia a modo de brincadeira, mas, mesmo assim, adorava sentir a sua carícia.

      — Tão asquerosamente brilhante, tão tecnicamente correta… E tão abismalmente errada — redarguiu. — A música não, idiota. Uma obra que emocionasse as pessoas dessa forma.

      — Mas…

      «Mas consegues fazê-lo, Stephan.»

      Žofie não soube porque parou antes de dizer aquelas palavras em voz alta, tal como não sabia porque não dera a mão a Stephan na capela. Talvez pudesse ter-lhe dito lá, no silêncio depois da música, como lhe falara do colar. Ou talvez não. Era avassalador aperceber-se de que conhecia alguém que poderia fazer algo tão mágico como aquilo algum dia, se continuasse a entrelaçar palavras, a criar histórias e a ajudar os outros a torná-las realidade. Era avassalador pensar que as suas obras talvez acabassem por se representar no Burgtheater algum dia, que as suas palavras se recitariam à frente de um público que riria ou choraria e que, no fim, se levantaria e aplaudiria, como o público fazia nas melhores peças, aquelas que os arrancavam de um mundo e os deixavam noutro que nem sequer existia realmente. Ou existia, mas só na imaginação dos que viam a peça, só durante aquelas poucas horas na escuridão. O paradoxo do teatro: Real e irreal ao mesmo tempo.

      * * *

      Stephan queria pedir a Dieter para se mudar para o banco do fundo para poder sentar-se junto de Žofie, para continuar perto dela e da música do coro e do sentimento, da esperança que surgira no seu interior ao partilhar aquela música com ela. Se não tivesse vindo com ele à leitura da sua peça, teria agarrado no seu diário e teria ido diretamente da capela para o Café Landtmann ou melhor ainda, para o Griensteidl, onde ninguém o interromperia. Teria afundado os dedos nas palavras, para melhorar alguma das suas peças ou para começar uma nova. Porém, Dieter levantou-se para segurar a cadeira a Žofie. Tinham combinado encontrar-se para ler a peça de Stephan. Todos deviam conseguir ouvir por cima do barulho: A mesa do lado estava a meio de uma discussão

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