O último comboio para a liberdade. Meg Waite Clayton

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O último comboio para a liberdade - Meg Waite Clayton HARPERCOLLINS PORTUGAL

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com essa idade, devia ter aberto a porta aos seus pretendentes. A Holanda permanecera neutra, mas, mesmo assim, declarara-se o estado de sítio e mobilizara-se o exército, os rapazes tinham sido enviados para proteger zonas essenciais para a defesa nacional, zonas que não incluíam o alpendre da casa de Truus. Ficava em casa a ler para os pequenos refugiados, que tinham chegado tão fracos e famintos que tivera vontade de lhes oferecer o seu próprio prato e, ao mesmo tempo, desejara comer cada trinca, com medo de ficar tão magra como eles. Tinham-na enfurecido e entristecido em partes iguais, essas crianças cuja reticência entristecia tanto a mãe. Essas crianças que também a transformaram em mãe e a fizeram questionar-se como conseguiria afastar a própria mãe do manto sufocante da tristeza calada daquelas crianças. No entanto, então, na manhã da primeira neve daquele inverno, duro e adiantado, Truus acordou e observou as árvores carregadas de neve, os corrimões nevados por cima das pontes nevadas, os caminhos brancos e impolutos em contraste com as águas escuras e estancadas do canal. Acordou as crianças sem fazer barulho e mostrou-lhes a paisagem. Vestiu-as, agradecida, naquela manhã, pelo sussurro das suas vozes quando falavam. Saíram para a rua e, à luz da lua do inverno que se refletia na neve, fizeram um boneco de neve. Foi só isso. Um simples boneco de neve, três bolas brancas empilhadas uma por cima da outra, com pedras em vez de olhos e ramos a modo de braços, sem boca, como se as crianças quisessem construir o boneco à sua imagem e semelhança. A mãe, com o chá da manhã na mão, espreitou pela janela quando estavam a acabar. Era o que fazia todas as manhãs. Era a sua forma de ver o que o Senhor lhe reservara, como costumava dizer. Naquela manhã, no entanto, surpreendeu-se e alegrou-se ao ver as crianças lá fora, mesmo que não sorrissem e não fizessem barulho. Truus apontou para a janela para que as crianças a cumprimentassem. Ao fazê-lo, uma delas atirou uma bola de neve contra o vidro e quebrou o silêncio. As outras começaram a rir-se e o rosto espantado da mãe também deu lugar às gargalhadas. Até à data, aquele continuava a ser o som mais bonito que Truus alguma vez ouvira, mesmo apesar de se ter sentido envergonhada. Como pudera desejar alguma coisa que não fosse a gargalhada daquelas crianças? Como pudera desejar ter alguma coisa para si própria?

      Truus parou subitamente o carro da senhora Kramarsky. No chão, junto do alpendre dos Weber, o vaso amarelo estava derrubado, com a terra espalhada pelo caminho. Recuou devagar com o carro, para não levantar pó, e começou a procurar uma saída para atravessar a fronteira através do bosque, repetindo novamente a prece de sempre, agradecendo a Deus por ter os Weber e por tudo o que tinham feito pelas crianças da Alemanha e pedindo ao Senhor para manter aquele casal idoso e valente a salvo.

      KLARA VAN LANGE

      Na casa dos Groenveld, situada em Jan Luijkenstraat, Truus — cansada depois de passar horas à procura de uma saída no bosque, para acabar por atravessar a quinta dos Weber a meio da noite, com os faróis do carro apagados e o depósito quase vazio — entregou as onze crianças às voluntárias. Klara van Lange, sentada à mesa do telefone com uma daquelas saias novas e horríveis que deixavam a barriga das pernas a descoberto, tapou o auscultador com a mão e sussurrou a Truus: «O hospital judeu de Nieuwe Keizersgracht.» Depois, falou para o auscultador. «Sim, sabemos que onze crianças são muitas, mas será apenas por uma noite ou duas, até encontrarmos famílias para… Se tomaram banho?» Olhou para Truus, nervosa. «Piolhos? Não, claro que não têm piolhos!»

      Truus apressou-se a examinar o cabelo das crianças e afastou a mais velha.

      — Tem um pente para piolhos, senhora Groenveld? — sussurrou. — Claro que tem. O seu marido é médico.

      — Sim, podemos enviar alguém para ajudar a cuidar do bebé — disse Klara, ao telefone. Depois, dirigiu-se a Truus. — Posso ir com eles — sussurrou.

      Por muito que Truus gostasse de ir com as crianças, não devia deixar Joop sozinho durante a noite. Devia agradecer a oferta.

      — Muito bem, quem quer um banho quente? — perguntou às crianças. Depois, virou-se para as mulheres. — Senhora Groenveld, pode encarregar-se das meninas mais pequenas com a menina Hackman? — Então, dirigiu-se à mais velha de todas. — Se te prepararmos um banho, consegues fazê-lo sozinha?

      — Posso ajudar com os piolhos do Benjamin, Tante Truus — ofereceu-se a rapariga.

      — Se pudesse escolher uma filha, querida — replicou Truus, acariciando-lhe a face —, seria uma menina tão doce como tu. Poderás desfrutar de um banho quente e agradável só para ti e, além disso, vou procurar uns sais de banho. — Virou-se para Klara, que acabara de desligar o telefone, e disse: — Senhora Van Lange, pode fazer umas sandes de queijo?

      — Sim, convenci o hospital judeu a acolher as crianças, apesar de não terem papéis. De nada, senhora Wijsmuller — respondeu Klara, com ironia e fez Truus pensar nela própria quando era jovem, embora muito mais bonita. Klara van Lange não precisava de mostrar a barriga das pernas, seguindo essa nova moda inexplicável para chamar a atenção dos homens. Meu Deus, se não se sentasse com cuidado, ver-lhe-iam os joelhos.

      — Claro que os convenceu, Klara — disse. — Nem sequer o primeiro-ministro conseguiria dizer-lhe que não. — Pensou que talvez devessem experimentar as saias de Klara e o seu poder de persuasão com o primeiro-ministro Colijn antes de, segundo os rumores, o governo holandês impossibilitar os estrangeiros de se estabelecer ali, não mediante o fecho literal da fronteira, mas alertando os alemães que fugiam do Reich de que a Holanda poderia ser um lugar de passagem, mas não de destino.

      ATRAVÉS DA JANELA, ÀS ESCURAS

      Eichmann afastou o relatório que estava a redigir, com o qual Hagen, o seu novo chefe, ficaria com o mérito, se o houvesse. Outro farsante a aproveitar-se da experiência sólida de Eichmann. Abriu a janela e inalou o ar outonal enquanto o comboio atravessava o porto de Itália até à Áustria. Vomitara tanto enquanto atravessavam o Mediterrâneo do Médio Oriente até Brindisi a bordo do Palestina que o médico da enfermaria tentara tirá-lo do barco em Rodes. A viagem inteira fora um fracasso absoluto: Um mês inteiro de viagem para que, no fim, os britânicos só lhes permitissem passar vinte e quatro horas em Haifa e as autoridades do Cairo lhes negassem os vistos para a Palestina. Doze longos dias no Egito, fora a única coisa que tinham conseguido.

      — Os judeus defraudam-se uns aos outros, essa é a base do caos financeiro da Palestina.

      — Talvez seja mais efetivo dar dados específicos, senhor — replicou Eichmann. — Quarenta banqueiros judeus em Jerusalém.

      — Quarenta banqueiros judeus e vigaristas — concordou Hagen. — Claro, outros cinquenta mil judeus emigrariam anualmente com o espólio que o Polkes pensa que devíamos dar-lhes.

      Polkes, o único contacto real que tinham feito durante a viagem, sugerira que, se a Alemanha realmente queria livrar-se dos judeus, devia permitir-lhes levar mil libras britânicas para emigrar para a Palestina. Fora assim que o judeu o expressara: «Mil libras britânicas», como se os marcos alemães fossem inomináveis.

      Eichmann escreveu no relatório: «O nosso objetivo não é que o capital judeu se transfira para o Reich, mas fazer com que os judeus que não têm meios emigrem.»

      Partiu o lápis, incapaz de suportar a pressão dos seus pensamentos. Tirou a navalha do bolso, pensando na madrasta, fria e austera, cuja família em Viena se casara com judeus ricos, daqueles que não estariam dispostos a ir-se embora sem as suas riquezas ilícitas.

      — Eu cresci aqui, em Linz — disse a Hagen, quando o comboio chegou ao topo de uma colina e as árvores se dispersaram para deixar ver a Áustria. O frio que sentia na cara naquele momento parecia-se com o frio de

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