Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros

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Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros Romancistas Essenciais

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ao ouvido. Vem ver como está.

      A velha fazia um esforço, e com uma voz gemida:

      — Ah! é o menino!

      — É o menino, é, diziam rindo.

      E a velha ficava a murmurar, espantada:

      — É o menino, é o menino!

      — Pobre de Cristo! dizia Amaro. Pobre de Cristo! Deus lhe dê uma boa morte!

      E voltavam para a sala de jantar onde o cônego Dias, todo enterrado na velha poltrona de chita verde, com as mãos cruzadas sobre o ventre, dizia logo:

      — Ora vá um bocadinho de música, pequena!

      Amélia ia sentar-se ao piano.

      — Ó filha, toca o Adeus! recomendava a S. Joaneira começando a sua meia.

      E Amélia, ferindo o teclado:

       Ai! adeus! acabaram-se os dias Que ditoso vivi a teu lado...

      A sua voz arrastava-se com melancolia; e Amaro soprando o fumo do cigarro, sentia-se todo enleado num sentimentalismo agradável.

      Quando descia para o seu quarto, à noite, ia sempre exaltado. Punha-se então a ler os Cânticos a Jesus, tradução do francês publicada pela sociedade das Escravas de Jesus. É uma obrazinha beata, escrita com um lirismo equívoco, quase torpe — que dá à oração a linguagem da luxúria: Jesus é invocado, reclamado com as sofreguidões balbuciantes de uma concupiscência alucinada: "Oh! vem, amado do meu coração, corpo adorável, minha alma impaciente quer-te! Amo-te com paixão e desespero! Abrasa-me! queima-me! Vem! esmaga-me! possui-me! " E um amor divino, ora grotesco pela intenção, ora obsceno pela materialidade, geme, ruge, declama assim em cem páginas inflamadas onde as palavras gozo, delícia, delírio, êxtase, voltam a cada momento, com uma persistência histérica. E depois de monólogos frenéticos de onde se exala um bafo de cio místico, vêm então imbecilidades de sacristia, notazinhas beatas resolvendo casos difíceis de jejuns, e orações para as dores do parto! Um bispo aprovou aquele livrinho bem impresso; as educandas lêem-no no convento. É beato e excitante; tem as eloquências do erotismo, todas as pieguices da devoção; encaderna-se em marroquim e dá-se às confessadas; é a cantárida canônica!

      Amaro lia até tarde, um pouco perturbado por aqueles períodos sonoros, túmidos de desejo; e no silêncio, por vezes, sentia em cima ranger o leito de Amélia; o livro escorregava-lhe das mãos, encostava a cabeça às costas da poltrona, cerrava os olhos, e parecia-lhe vê-la em colete diante do toucador desfazendo as tranças; ou, curvada, desapertando as ligas, e o decote da sua camisa entreaberta descobria os dois seios muito brancos.

      Erguia-se, cerrando os dentes, com uma decisão brutal de a possuir.

      Começara então a recomendar-lhe a leitura dos Cânticos a Jesus.

      — Verá, é muito bonito, de muita devoção! disse ele, deixando-lhe o livrinho uma noite no cesto da costura. Ao outro dia, ao almoço, Amélia estava pálida, com as olheiras até o meio da face. Queixou-se de insônia, de palpitações. — E então, gostou dos Cânticos? — Muito. Orações lindas! respondeu. Durante todo esse dia não ergueu os olhos para Amaro. Parecia triste — e sem razão, às vezes, o rosto abrasava-se-lhe de sangue.

      Os piores momentos para Amaro eram as segundas e quartas-feiras, quando João Eduardo vinha passar as noites em família. Até às nove horas o pároco não saía do quarto; e quando subia para o chá desesperava-se de ver o escrevente embrulhado no seu xale-manta, sentado junto de Amélia.

      — Ai o que estes dois têm para aí palrado, senhor pároco! dizia a S. Joaneira.

      Amaro tinha um sorriso lívido, partindo devagar a sua torrada, com os olhos fitos na chávena.

      Amélia na presença de João Eduardo, agora, não tinha com o pároco a mesma familiaridade alegre, mal levantava os olhos da costura; o escrevente, calado, chupava o cigarro; e havia grandes silêncios em que se sentia o vento uivar, encanado na rua.

      — Olha quem andar agora nas águas no mar! dizia a S. Joaneira, fazendo devagar a sua meia.

      — Safa! acrescentava João Eduardo.

      As suas palavras, os seus modos irritavam o padre Amaro; detestava-o pela sua pouca devoção, pelo seu bonito bigode preto. E diante dele sentia-se mais enleado no seu acanhamento de padre.

      — Toca alguma coisa, filha, dizia a S. Joaneira.

      — Estou tão cansada! respondia Amélia apoiando-se nas costas da cadeira, com um suspirozinho de fadiga.

      A S. Joaneira, então, que não gostava de "ver gente mona", propunha uma bisca de três; e o padre Amaro, tomando o seu candeeiro de latão, descia para o quarto, muito infeliz.

      Nessas noites quase detestava Amélia; achava-a casmurra. A intimidade do escrevente na casa parecia-lhe escandalosa: decidiu mesmo falar à S. Joaneira, dizer-lhe "que aquele namoro de portas adentro não podia ser agradável a Deus". Depois, mais razoável, resolvia esquecê-la, pensava em sair da casa, da paróquia. Representava-se então Amélia com a sua coroa de flores de laranjeira, e João Eduardo, muito vermelho, de casaca, voltando da Sé, casados... Via a cama de noivado com os seus lençóis de renda... E todas as provas, as certezas do amor dela pelo "idiota do escrevente" cravavam-se-lhe no peito como punhais...

      — Pois que casem, e que os leve o diabo!...

      Odiava-a então. Fechava violentamente a porta à chave como para impedir que lhe penetrasse no quarto o rumor da sua voz ou o frufru das suas saias. Mas daí a pouco, como todas as noites, escutava com o coração aos saltos, imóvel e ansioso, os ruídos que ela fazia em cima ao despir-se, palrando ainda com a mãe.

      Um dia Amaro jantara em casa da Sra. D. Maria da Assunção; fora depois passear pela estrada de Marrazes, e à volta, ao fim da tarde, encontrou, ao entrar em casa, a porta da rua aberta; sobre o capacho, no patamar, estavam os chinelos de ourelo da Ruça.

      — Tonta de rapariga! pensou Amaro, foi à fonte e esqueceu-se de fechar a porta.

      Lembrou-se que Amélia tinha ido passar a tarde com a Sra. D. Joaquina Gansoso, numa fazenda ao pé da Piedade, e que a S. Joaneira falara em ir à irmã do cônego. Fechou devagar a cancela, subiu à cozinha a acender o seu candeeiro; como as ruas estavam molhadas da chuva da manhã, trazia ainda galochas de borracha; os seus passos não faziam rumor no soalho; ao passar diante da sala de jantar sentiu no quarto da S. Joaneira, através do reposteiro de chita, uma tosse grossa; surpreendido, afastou sutilmente um lado do reposteiro, e pela porta entreaberta espreitou. — Oh Deus de Misericórdia! a S. Joaneira, em saia branca, atacava o colete; e, sentado à beira da cama, em mangas de camisa, o cônego Dias resfolegava grosso!

      Amaro desceu, colado ao corrimão, fechou muito devagarinho a porta, e foi ao acaso para os lados da Sé. O céu enevoara-se, leves gotas de chuva caíam.

      — E esta! E esta! dizia ele assombrado.

      Nunca suspeitara um tal escândalo! A S. Joaneira, a pachorrenta S. Joaneira! O cônego, seu mestre de Moral! E era um velho, sem os ímpetos do sangue novo, já na paz que lhe deveriam ter dado a idade, a nutrição, as dignidades eclesiásticas!

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