Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros

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Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros Romancistas Essenciais

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      Dias depois o padre Amaro e o cônego Dias tinham ido jantar com o abade da Cortegassa. - Era um velho jovial, muito caridoso, que vivia há trinta anos naquela freguesia e passava por ser o melhor cozinheiro da diocese. Todo o clero das vizinhanças conhecia a sua famosa cabidela de caça. O abade fazia anos, havia outros convidados - o padre Natário e o padre Brito: o padre Natário era uma criaturinha biliosa, seca, com dois olhos encovados, muito malignos, a pele picada das bexigas e extremamente irritável. Chamavam-lhe o Furão. Era esperto e questionador; tinha fama de ser grande latinista, e ter uma lógica de ferro; e dizia-se dele: é uma língua de víbora! Vivia com duas sobrinhas órfãs, declarava-se extremoso por elas, gabava-lhes sempre a virtude, e costumava chamar-lhes as duas rosas do seu canteiro. O padre Brito era o padre mais estúpido e mais forte da diocese; tinha o aspecto, os modos, a forte vida de um robusto beirão que maneja bem o cajado, emborca um almude de vinho, pega alegremente à rabiça do arado, serve de trolha nos arranjos de um alpendre , e nas sestas quentes de Junho atira brutalmente as raparigas para cima das medas de milho. O senhor chantre, sempre correto nas suas comparações mitológicas, chamava-lhe - o leão de Nemeia.

      A sua cabeça era enorme, de cabelo lanígero que lhe descia até as sobrancelhas: a pele curtida tinha um tom azulado, do esforço da navalha de barba; e, nas suas risadas bestiais, mostrava dentinhos muito miúdos e muito brancos do uso da broa.

      Quando iam sentar-se à mesa chegou o Libaninho todo azafamado, gingando muito, com a calva suada, exclamando logo em tons agudos:

      — Ai, filhos! desculpem-me, demorei-me mais um bocadinho. Passei pela igreja de Nossa Senhora da Ermida, estava o padre Nunes a dizer uma missa de intenção. Ai, filhos! papei-a logo, venho mesmo consoladinho!

      A Gertrudes, a velha e possante ama do abade, entrou então com a vasta terrina do caldo de galinha: e o Libaninho, saltitando em redor dela, começou os seus gracejos:

      — Ai, Gertrudinhas, quem tu fazias feliz, bem eu sei!

      A velha aldeã ria, com o seu espesso riso bondoso, que lhe sacudia a massa do seio.

      — Olha que arranjo me aparece agora pela tarde!...

      — Ai, filha! as mulheres querem-se como as peras, maduras e de sete cotovelos. Então é que é chupá-las!

      Os padres gargalharam; e, alegremente, acomodaram-se à mesa.

      O jantar fora todo cozinhado pelo abade: logo à sopa as exclamações começaram:

      — Sim, senhor, famoso! Disto nem no Céu! Bela coisa!

      O excelente abade estava escarlate de satisfação. Era, como dizia o senhor chantre, "um divino artista" ! Lera todos os Cozinheiros completos, sabia inúmeras receitas; era inventivo - e, como ele afirmava dando marteladinhas no crânio, "tinha-lhe saído muito petisco daquela cachimônia" ! Vivia tão absorvido pela sua "arte" que lhe acontecia, nos sermões de domingo, dar aos fiéis ajoelhados para receberem a palavra de Deus, conselhos sobre o bacalhau guisado ou sobre os condimentos do sarrabulho. E ali vivia feliz, com a sua velha Gertrudes, de muito bom paladar também, com o seu quintal de ricos legumes, sentindo uma só ambição na vida - ter um dia a jantar o bispo!

      — Oh senhor pároco! dizia ele a Amaro, por quem é! mais um bocadinho de cabidela, faça favor! Essas codeazinhas de pão ensopadas no molho! Isso! isso! Que tal, hem? - E com um aspecto modesto: - Não é lá por dizer, mas a cabidela hoje saiu-me boa!

      Estava com efeito, como disse o cônego Dias, de tentar Santo Antão no deserto! Todos tinham tirado as capas, e, só com as batinas, as voltas alargadas, comiam devagar, falando pouco. Como no dia seguinte era a festa da Senhora da Alegria, os sinos na capela, ao lado, repicavam; e o bom sol do meio-dia dava tons muito alegres à louça, às bojudas canecas azuis com vinho da Bairrada, aos pires de pimentões escarlates, às frescas malgas de azeitonas pretas - enquanto o bom abade, de olho arregalado, mordendo o beiço, ia cortando com cuidado nacos brancos do peito do capão recheado.

      As janelas abriam para o quintal. Viam-se dois largos pés de camélias vermelhas crescendo junto ao peitoril, e para além das copas das macieiras um pedaço muito vivo de céu azul-ferrete. Uma nora chiava ao longe, lavadeiras batiam a roupa.

      Sobre a cômoda, entre in-folios, na sua peanha, um Cristo perfilava tristemente contra a parede o seu corpo amarelo, coberto de chagas escarlates: e, aos lados, simpáticos santos sob redomas de vidro, lembravam legendas mais doces de religião amável: o bom gigante S. Cristóvão atravessando o rio com o divino pequerrucho que sorri, e faz saltar o mundo sobre a sua mãozinha como uma péla; o doce pastor S. Joãozinho coberto com uma pele de ovelha, e guardando os seus rebanhos, não com um cajado, mas com uma cruz; o bom porteiro S. Pedro, tendo na sua mão de barro as duas santas chaves que servem nas fechaduras do Céu! Nas paredes, em litografias de coloridos cruéis, o patriarca S. José apoiava-se ao seu cajado onde florescem lírios brancos; o cavalo empinado do bravo S. Jorge pisava o ventre dum dragão surpreendido; e o bom Santo Antônio, à beira dum regato, sorria, falando a um tubarão. O tlintlim dos copos, o ruído das facas animava a velha sala, de teto de carvalho defumado, duma alegria desusada. E Libaninho devorava, dizendo pilhérias.

      — Gertrudinhas, flor do caniço, passa-me as bages. Não me olhes assim, magana, que me fazes revolver os intestinos!

      — O diabo é o homem! dizia a velha. Olha para o que lhe deu! Falasse-me aqui há trinta anos, seu perdido!

      — Ai, filha! exclamava revirando os olhos, nem me digas isso que sinto coisas pela espinha acima!

      Os padres engasgavam-se de riso. Já duas canecas de vinho estavam vazias: e o padre Brito desabotoara a batina, deixando ver a sua grossa camisola de lã da Covilhã, onde a marca da fábrica, feita de linha azul, era uma cruz sobre o coração.

      Um pobre então viera à porta rosnar lamentosamente Padre-Nossos; e enquanto Gertrudes lhe metia no alforje metade duma broa, os padres falaram dos bandos de mendigos que agora percorriam as freguesias.

      — Muita pobreza por aqui, muita pobreza! dizia o bom abade. Ó Dias, mais este bocadinho da asa!

      — Muita pobreza, mas muita preguiça, considerou duramente o padre Natário. - Em muitas fazendas sabia ele que havia falta de jornaleiros, e viam-se marmanjos, rijos como pinheiros, a choramingar Padre-Nossos pelas portas. - Súcia de mariolas, resumiu.

      — Deixe lá, padre Natário, deixe lá! disse o abade. Olhe que há pobreza deveras. Por aqui há famílias, homem, mulher e cinco filhos, que dormem no chão como porcos e não comem senão ervas.

      — Então que diabo querias tu que eles comessem? exclamou o cônego Dias lambendo os dedos depois de ter esburgado a asa do capão. Querias que comessem peru? Cada um como quem é!

      O bom abade puxou, repoltreando-se, o guardanapo para o estômago, e disse com afeto:

      — A pobreza agrada a Deus Nosso Senhor.

      — Ai filhos! acudiu o Libaninho num tom choroso, se houvesse só pobrezinhos isto era o reininho dos Céus!

      O padre Amaro considerou com gravidade:

      — É bom que haja quem tenha cabedais para legados pios, edificações de capelas...

      — A propriedade devia estar na mão da Igreja, interrompeu Natário com autoridade.

      O cônego Dias arrotou com estrondo e acrescentou:

      —

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