Romancistas Essenciais - Eça de Queirós. Eca de Queiros

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Romancistas Essenciais - Eça de Queirós - Eca de Queiros Romancistas Essenciais

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da Gralheira: — "Todos são do mesmo barro!" Todos são do mesmo barro, — sobem em dignidades, entram nos cabidos, regem os seminários, dirigem as consciências envoltos em Deus como numa absolvição permanente, e têm no entanto, numa viela, uma mulher pacata e gorda, em casa de quem vão repousar das atitudes devotas e da austeridade do ofício, fumando cigarros de estanco e palpando uns braços rechonchudos!

      Vinham-lhe então outras reflexões: que gente era aquela, a S. Joaneira e a filha, que viviam assim sustentadas pela lubricidade tardia de um velho cônego? A S. Joaneira fora decerto bonita, bem-feita, desejável — outrora! Por quantos braços teria passado até chegar, pelos declives da idade, àqueles amores senis e mal pagos? As duas mulherinhas, que diabo, não eram honestas! Recebiam hóspedes, viviam da concubinagem. Amélia ia sozinha à igreja, às compras, à fazenda; e com aqueles olhos tão negros, talvez já tivesse tido um amante! — Resumia, filiava certas recordações: um dia que ela lhe estivera mostrando na janela da cozinha um vaso de rainúnculos, tinham ficado sós, e ela, muito corada, pusera-lhe a mão sobre o ombro e os seus olhos reluziam e pediam; outra ocasião ela roçara-lhe o peito pelo braço! A noite caíra, com uma chuva fina. Amaro não a sentia, caminhando depressa, cheio de uma só idéia deliciosa que o fazia tremer: ser o amante da rapariga, como o cônego era o amante da mãe! Imaginava já a boa vida escandalosa e regalada; enquanto em cima a grossa S. Joaneira beijocasse o seu cônego cheio de dificuldades asmáticas — Amélia desceria ao seu quarto, pé ante pé, apanhando as saias brancas, com um xale sobre os ombros nus... Com que frenesi a esperaria! E já não sentia por ela o mesmo amor sentimental, quase doloroso: agora a idéia muito magana dos dois padres e as duas concubinas, de panelinha, dava àquele homem amarrado pelos votos uma satisfação depravada! Ia aos pulinhos pela rua. — Que pechincha de casa!

      A chuva caía, grossa. Quando entrou havia já luz na sala de jantar. Subiu.

      — lh, como vem frio! disse-lhe Amélia sentindo, ao apertar-lhe a mão, a umidade da névoa.

      Sentada à mesa, costurava com um xale-manta pelos ombros: João Eduardo, ao pé, jogava a bisca com a S. Joaneira.

      Amaro sentou-se um pouco embaraçado; a presença do escrevente dera-lhe de repente, sem saber por quê, o duro choque duma realidade antipática: e todas as esperanças, que lhe tinham vindo a dançar uma sarabanda na imaginação, encolhiam-se uma a uma, murchavam — vendo ali Amélia ao pé do noivo, curvada sobre uma costura honesta, com o seu escuro vestido afogado, junto do candeeiro de família! E tudo em redor lhe parecia como mais recatado, as paredes com o seu papel de ramagens verdes, o armário cheio de louça luzidia da Vista Alegre, o simpático e bojudo pote de água, o velho piano mal firme nos seus três pés torneados; o paliteiro tão querido de todos — um Cupido rechonchudo com um guarda-chuva aberto eriçado de palitos, e aquela tranqüila bisca jogada com os dichotes clássicos. Tudo tão decente!

      Afirmava-se então nas grossas roscas do pescoço da S. Joaneira, como para descobrir nelas as marcas das beijocas do cônego: ah! tu, não há dúvida, és "uma barregã de clérigo". Mas Amélia! com aquelas longas pestanas descidas, o beiço tão fresco!... Ignorava decerto as libertinagens da mãe; ou, experiente, estava bem resolvida a estabelecer-se solidamente na segurança dum amor legal! — E Amaro, da sombra, examinava-a longamente como para se certificar, na placidez do seu rosto, da virgindade do seu passado.

      — Cansadinho, senhor pároco, hem? disse a S. Joaneira. E para João Eduardo: — Trunfo, faz favor, seu cabeça no ar!

      O escrevente, namorado, distraía-se.

      — É o senhor a jogar, dizia-lhe a S. Joaneira a cada momento.

      Depois ele esquecia-se de comprar cartas.

      — Ah menino, menino! dizia ela com a sua voz pachorrenta, que lhe puxo essas orelhas! Amélia ia cosendo com a cabeça baixa: tinha um pequeno casabeque preto com botões de vidro, que lhe disfarçava a forma do seio.

      E Amaro irritava-se daqueles olhos fixos na costura, daquele casaco amplo escondendo a beleza que mais apetecia nela! E nada a esperar. Nada dela lhe pertenceria, nem a luz daquelas pupilas, nem a brancura daqueles peitos! Queria casar — e guardava tudo para o outro, o idiota, que sorria baboso, jogando paus! Odiou-o então, dum ódio complicado de inveja ao seu bigode negro e ao seu direito de amar...

      — Está incomodado, senhor pároco? perguntou Amélia, vendo-o mexer-se bruscamente na cadeira.

      — Não, disse ele secamente.

      — Ah! fez ela, com um leve suspiro, picando rapidamente o pesponto.

      O escrevente, baralhando as cartas, começara a falar de uma casa que queria alugar; a conversa caiu sobre arranjos domésticos.

      — Traz-me luz! gritou Amaro à Ruça.

      Desceu para o seu quarto, desesperado. Pôs a vela sobre a cômoda; o espelho estava defronte, e a sua imagem apareceu-lhe; sentiu-se feio, ridículo com a sua cara rapada, a volta hirta como uma coleira, e por trás a coroa hedionda. Comparou-se instintivamente com o outro que tinha um bigode, o seu cabelo todo, a sua liberdade! Para que hei-de eu estar a ralar-me? pensou. O outro era um marido; podia dar-lhe o seu nome, uma casa, a maternidade; ele só poderia dar-lhe sensações criminosas, depois os terrores do pecado! Ela simpatizava talvez com ele, apesar de padre; mas antes de tudo, acima de tudo, queria casar; nada mais natural! Via-se pobre, bonita, só: cobiçava uma situação legítima e duradoura, o respeito das vizinhas, a consideração dos lojistas, todos os proveitos da honra!

      Odiou-a então, e o seu vestido afogado e a sua honestidade! A estúpida, que não percebia que ao pé dela, sob uma negra batina, uma paixão devota a espreitava, a seguia, tremia e morria de impaciência! Desejou que ela fosse como a mãe, — ou pior, toda livre, com vestidos garridos, uma cuia impudente, traçando a perna e fitando os homens, uma fêmea fácil como uma porta aberta...

      — Boa! Estou a desejar que a rapariga fosse uma desavergonhada! — pensou, recaindo em si um pouco envergonhado. Está claro: não podemos pensar em mulheres decentes, temos que reclamar prostitutas! Bonito dogma!

      Abafava. Abriu a janela. O céu estava tenebroso; a chuva cessara; o piar das corujas na Misericórdia cortava só o silêncio.

      Enterneceu-se, então, com aquela escuridão, aquela mudez de vila adormecida. E sentiu subir outra vez, das profundidades do seu ser, o amor que sentira ao princípio por ela, muito puro, dum sentimentalismo devoto: via a sua linda cabeça, duma beleza transfigurada e luminosa, destacar da negrura espessa do ar; e toda a sua alma foi para ela num desfalecimento de adoração, como no culto a Maria e na Saudação Angélica; pediu-lhe perdão ansiosamente de a ter ofendido; disse-lhe alto: És uma santa, perdoa! — Foi um momento muito doce, de renunciamento carnal...

      E, espantado quase daquelas delicadezas de sensibilidade que descobria subitamente em si, pôs-se a pensar com saudade — que se fosse um homem livre seria um marido tão bom! Amorável, delicado, dengueiro, sempre de joelhos, todo de adorações! Como amaria o seu filho, muito pequerruchinho, a puxar-lhe as barbas! À idéia daquelas felicidades inacessíveis, os olhos arrasaram-se-lhe de lágrimas. Amaldiçoou, num desespero, "a pega da marquesa que o fizera padre", e o bispo que o confirmara!

      — Perderam-me! perderam-me! dizia, um pouco desvairado.

      Sentiu então os passos de João Eduardo que descia, e o rumor das saias de Amélia. Correu a espreitar pela fechadura, cravando os dentes no beiço, de ciúme. A cancela bateu, Amélia subiu cantarolando baixo.

      — Mas a sensação do amor místico que o penetrara um momento, olhando a noite, passara;

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