A agua profunda. Paul Bourget

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A agua profunda - Paul Bourget

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familia que lhe dava o nome e que partilha, com os de Rambures e de La Tour Euguerrand, a honra de ser na Picardia a mais bem conservada das fortalezas construidas contra a invasão ingleza.

      Nerestaing data de 1338, da epocha do armsticio que o Papa Bento XII impoz ao rei Eduardo III.

      Pelo facto de nas partilhas ter pertencido esta maravilha de architectura ao representante da familia, tinha o mais novo sido desterrado para uma quinta proxima, denominada «Os Salgueiros» e que pertencia por acaso aos Nerestaing, devido á liberalidade de um parente. Joanna tinha lá nascido, e as suas mais longinquas recordações d'infancia mostravam-lhe o modesto palacete – um antigo pavilhão de caça – onde cresceu, e, por contraste, a senhorial vivenda em que habitava sua prima.

      Estas impressões retrospectivas accentuavam-se. Via-se ainda creança, indo procurar Valentina, á qual tinha fallecido a mãe, para a convidar a passar algumas semanas em sua companhia. Seu tio ia viajar, para se distrahir do desgosto que o torturava. Perdera inexperadamente a esposa, em pleno vigor da vida e cheia de saude. Foi então, durante a permanencia da orfã junto d'ella, que principiou o soffrimento de Joanna. Teve sempre aquelles pequenos defeitos que são como que reacções involuntarias do nosso systema nervoso. Era impulsiva e facilmente irritavel, desigual e caprichosa, guardando sempre para o dia seguinte o trabalho da vespera, desarranjada e estragada, emfim uma d'essas machinas cerebraes mal equilibradas e em que os medicos modernos veem logo um exemplar frisante de hysterismo.

      Sua mãe, que não conhecia a commodidade das desculpas physiologicas, censurava-a sempre pelas suas propensões maldosas, muito principalmente desde que Valentina vivia com ella, em virtude da comparação entre as duas. A que mais tarde se devia tornar a gentil castellã do glorioso Nerestaing, era, com effeito, uma creança muito equilibrada, muito prudente, muito circumspecta, uma pequena senhora, emfim, e a tia, seduzida pelos seus encantos, estimava-a mais do que á sua propria filha, ao mesmo tempo que, por uma piedade natural, mas não menos imprudente, prodigalisava á pequenita, que não tinha mãe, os mais indulgentes afagos.

      O secreto e irresistivel instincto de antipathia quasi animal que tinha tornado insupportaveis a Joanna taes elogios e taes ternuras, justifica-se talvez, para uma creança de treze annos, pelo ciume da affeição materna. Esta aversão tinha-se tornado tão intensa, que um dia que entrou só no quarto de Valentina, encheu de tinta os cadernos que estavam sobre a mesa, despedaçou os objectos que encontrou no armario, deitou ao chão e pisou aos pés o retrato de sua prima, loucamente, furiosamente. Passados dezesete annos, recordava-se ainda do temor, do susto que tinha tido quando a senhora de Nerestaing, que a procurára por toda a casa, a foi encontrar n'aquelle abominavel acto de vingança. E foi sua propria prima quem pediu e alcançou perdão para ella. Um tal delicto tinha, pelo menos, dado como resultado a partida de Valentina, quasi em seguida, para casa d'um outro parente. A mãe comprehendera tudo.

      Por uma anomalia apparentemente estranha, mas que se torna bem logica perante a reflexão, o ciume que tinha por Valentina, foi a causa de que, durante os annos da juventude, Joanna se ligasse a elle mais intimamente. Invejar alguma pessoa é pensar n'ella. É sentir por ella. É, por uma d'estas dualidades desharmonicas, tão familiares á nossa natureza emotiva, sentir ao mesmo tempo attracção e repulsão pela sua presença. A inveja não é, a principio, nem é nunca o odio puro. É mais e menos, por isso que com ella ha sempre de mistura uma admiração dolorosa, involuntaria, revoltada, mas uma admiração em todo o caso, por consequencia, uma especie de amor. Assim se explicam na existencia dos artistas, por exemplo, aonde esta paixão complicada tem como que o seu dominio proprio, as alternativas de exagerada admiração e de descredito entre dois rivaes, tão sinceras quanto são contradictorias.

      Dos treze aos dezoito annos, esteve Joanna persuadida de que não tinha melhor amiga do que Valentina, e era verdade, no sentido de que nenhuma das suas companheiras d'aquella epocha lhe causava impressões tão fortes. Ou fosse porque a fascinassem as bellas qualidades de sua prima, ou porque se revoltasse contra ellas, inteiramente, com uma amargura irritada, tinha-a sempre no pensamento. Quando entraram juntas na sociedade, modificou-se por algum tempo, a sua sensibilidade mal equilibrada, por isso que Joanna teve, então, pela primeira vez, um successo superior ao de Valentina. Esta, que se salientára sempre, emquanto as duas viveram n'um meio restricto, pela verdadeira seriedade, pela delicadeza simples, pela harmonia e suavidade de todo o seu ser, passou logo ao segundo plano, quando começaram a figurar n'um outro theatro. Havia em Valentina uma predilecção especial pela modestia e pelo retrahimento, e em Joanna um desejo de se divertir e de brilhar que faziam d'uma a mais desconhecida das comparsas, n'uma primeira visita, jantar ou baile, e attrahiam em volta da outra todas as attenções tão superficiaes, mas tão estonteantes, de que as «coquetes» ingenuas são muitas vezes victimas, n'essa edade da transição em que nas mulheres desponta o desejo de agradarem.

      O caso é que Joanna se matrimoniou logo no primeiro anno do seu commum debute – e primeiro do que sua prima! A ancia d'este triumpho – o mais lisongeiro para as mulheres – não foi extranha á facilidade com que deu o «sim» ao pedido do barão de Node.

      É preciso acrescentar que este casamento satisfazia ao completo edial que paes, desejosos d'um bom partido para suas filhas, poderiam esperar no anno da graça de 1890. O noivo era uma figura esbelta, possuia um bello nome, uma boa furtuna e o prestigio que exercem, apezar de tudo, mesmo sobre pessoas de linhagem distincta que viveram durante muito tempo na provincia, «os parisienses».

      Julio de Node era frequentador das corridas; pertencia a um dos melhores clubs e salientava-se entre essa «coterie» que faz a moda no verão, em Deauville; nas caçadas, nas margens do Sena e Oise, no outomno; em Pau e na Riviera, no inverno e na primavera em Paris, n'esse Paris que vae da praça Vandome a Longchamps.

      Joanna via-se, antecipadamente, gosando uma vida de continua agitação n'esse turbilhão que tanto seduz muitas mulheres.

      O seu orgulho por causa d'esse casamento era tão profundo, tão completo, que acabara de cicatrizar a antiga ferida da inveja. Taes cicatrizes estão, porém, sempre tão proximas de reabrir!

      Nunca, antes, nem depois, estimou tão intensamente sua prima.

      Chegára ao extremo de a lamentar, quando comparava o brilhante destino que a esperava com o futuro da supplantada Valentina. Mais tarde teria ella que lhe inspirar egual piedade, mas sem ser fingida.

      Faz-se só justiça reconhecendo, para explicar, ou antes desculpar as amarguras das suas desillusões, que se este casamento tinha, a despeito das apparencias seductoras, motivos para não ser muito venturoso, tinha tambem outros para não ser completamente infeliz.

      Joanna teve um só filho que nasceu em condições bem tristes.

      Foi necessario sacrificál-o para salvar a mãe. A maternidade foi-lhe, desde esse momento, defeza.

      Seu marido, que procurava como tantos outros augmentar a furtuna, transaccionando constantemente com os cento e vinte mil francos que constituiam o liquido dos seus haveres, encontrou-se compromettido, pouco a pouco, por muitas especulações infelizes. Jogou para reparar as perdas e perdeu mais. Pediu a assignatura de sua mulher, que lh'a deu a principio, negando-lh'a depois, por conselho dos paes, para não prejudicar a sua independencia.

      As questões de dinheiro transformaram-se, para este casal sem filhos ao qual uma continua dissipação perturba a energia moral, em discussões a principio violentas e que depois degeneraram em disputas. De scena em scena, a separação tornou-se inevitavel. Deu-se antes de findar o setimo anno d'este bello enlace, tão «auspicioso» como diziam as noticias de certos jornaes, quando se celebrou. Durava já havia quatro annos, e Joanna esperava sem cessar que seu marido pedisse uma desligação mais completa dos laços conjugaes, para ficar inteiramente livre e reparar, por uma nova união, a sua fortuna reduzida a menos d'uma terça parte. Esperava isto, e, apezar das ideias religiosas que professava e das da sociedade em que vivia a constituissem na

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