A novela gráfica como género literário. Alexandra Dias
Чтение книги онлайн.
Читать онлайн книгу A novela gráfica como género literário - Alexandra Dias страница 9
Aaron Meskin considera, no ensaio «Comics as Literature», que grande parte da resistência ao tratamento da banda desenhada como literatura resulta da combinações de três fatores essenciais: o primeiro, pensar a banda desenhada como literatura significa ignorar os seus elementos visuais; o segundo, não reconhecer a essência da banda desenhada, assim como aquilo que nela é distinto de outras formas; e, o terceiro, haver banda desenhada que não é literatura75.
Apesar da força argumentativa destas considerações, não temos necessariamente de abandonar a tese «da banda desenhada como literatura», por duas ordens de razões. Primeiro, porque existem bandas desenhadas que possuem os mesmos requisitos narratológicos e novelísticos de um romance e que, em processos de transescrita/adaptação, ao integrar excertos e/ou a totalidade do texto de origem, exibem as mesmas marcas de literariedade. Segundo, porque esta discussão, ao invés de constituir um impasse, permite uma discussão enriquecedora, tanto para a teoria literária como para a teoria da banda desenhada, permitindo compreender fenómenos de fusão interartística e perceber como os diversos sistemas semióticos se interpenetram dando origem a formas artísticas e a processos de hibridação novos.
Um debate em torno desta questão conduz-nos necessariamente à definição de literatura, alicerçada no conceito de literariedade, cuja síntese e percurso histórico são estabelecidos por Genette em Fiction et Diction. De acordo com Genette, a literatura é um objeto estético resultante do uso de um material específico, a língua natural. A literatura é, assim, a «arte da linguagem verbal» e uma obra de arte é literária quando, essencial ou exclusivamente, utiliza a língua verbal. No entanto, esta condição, apesar de necessária, não é suficiente76. A chave reside no que Jakobson designou por «literariedade», ou seja, «aquilo que faz de uma mensagem verbal uma obra de arte»77. A literalidade constitui o objeto ←32 | 33→da Poética, que, enquanto ciência que estuda o discurso literário, constitui uma reflexão sobre a literatura, centrando-se não no conjunto de factos empíricos que determinam as obras literárias, mas no discurso literário, o que permite perspetivar a obra literária como uma estrutura abstrata na qual existem constantes discursivas que podem ser estudadas cientificamente78.
Foi com a finalidade de abarcar todo o domínio de estudos da arte, escolhendo a poesia como terreno de eleição, que se efetuou o renascimento da Poética. A Poética designa a abordagem da literatura em termos abstratos e internos, assentando na interrogação das propriedades do discurso literário, isto é, apresenta-se como uma teoria da estrutura e do funcionamento do discurso literário que «visa o conhecimento das leis gerais que presidem ao aparecimento de cada obra […] qualquer obra é então apenas considerada como a manifestação de uma estrutura abstrata muito mais geral, de que ela não é senão uma das realizações possíveis»79. A Poética constitui-se, então, como a ciência da literatura cujo objeto de estudo é constituído pelas propriedades que singularizam o facto literário – a literariedade. No sistema literário, «os formantes linguísticos obtêm […] um valor autónomo»80 e a linguagem desempenha uma função estética, o que se tornou a preocupação central da ciência literária, já que «o que importa para a Poética é a compreensão da função poética»81. A função poética é a orientação para «a mensagem enquanto tal», ou seja, a forma da mensagem na língua literária é o fator dominante, e a palavra, e por extensão a mensagem, é entendida enquanto forma, enquanto qualidade fonética, morfossintática e lexical.
Num ensaio de 1921, Roman Jakobson coloca a questão que se tornará o grande paradigma da teoria da literariedade, da seguinte forma: o que é que faz de uma mensagem verbal uma obra de arte82. A resposta reside na compreensão da função poética da linguagem. Jakobson apresenta seis fatores que intervêm em qualquer ato de comunicação verbal e que determinam uma função diferente, associando assim a matéria da poética – a linguagem – à da linguística. A ênfase colocada na mensagem caracteriza a função poética. Esta função não é a única possuída pela poesia, mas sim a mais dominante, servindo também para ←33 | 34→estabelecer a dicotomia fundamental entre signos e objetos, com o intuito de realçar a qualidade evidente daqueles, isto é, o seu lado palpável83.
Ainda que se distingam seis dos aspetos básicos da linguagem, não se encontram mensagens verbais que apresentem apenas uma destas funções. A particularidade dos diversos géneros poéticos reside no facto de implicarem a existência – paralela à da função poética, que é a predominante – das outras funções verbais numa ordem hierárquica. A estrutura verbal da mensagem depende, basicamente, da função predominante. Definida deste modo, a função poética conduz à necessidade de estabelecimento dos critérios que permitem reconhecer empiricamente a função poética através dos dois modos fundamentais de organização utilizados no comportamento verbal – a e a combinação84:
La fonction poétique projette le principe d’équivalence de l’axe de la sélection sur l’axe de la combinaison. L’équivalence est promue au rang de procédé constitutif de la séquence. […] Par l’application du principe d’équivalence à la séquence, un principe de répétition est acquis qui rend possible non seulement la réitération des séquences constitutives du message poétique, mais aussi bien celle du message lui-même dans sa totalité. Cette possibilité de réitération, immédiate ou différée, cette réification du message poétique et de ses éléments constitutifs, cette conversion du message en une chose qui dure, tout cela en fait représente une propriété intrinsèque et efficient de la poésie85.
Jakobson recorda, neste excerto, os dois modos básicos da conduta verbal: a seleção e a combinação. Num determinado enunciado verbal, o falante seleciona, numa determinada série, um signo verbal que se conjuga num discurso onde o eixo da combinação não é dominado pelo princípio da equivalência, ao contrário do discurso poético, onde o princípio de equivalência rege a seleção e ambos os termos selecionados se combinam dentro da cadeia da língua. A linguagem literária constrói as suas sequências, as suas cadeias, procurando contínuas equivalências com termos já emitidos, reiterando o emitido, repetindo na cadeia traços fónicos, morfológicos, sintáticos e semânticos. A manifestação linguística concreta da função poética da linguagem funciona como o eixo organizativo dos textos literários86.
A questão colocada explicitamente por Jakobson pode ser entendida, de acordo com Genette, de duas maneiras diferentes. A primeira parte da interrogação «quels sont les textes qui sont des œuvres?»87, a partir da qual se estabelece ←34 | 35→a necessidade de identificar a literariedade dos textos e averiguar as razões pelas quais são literários. Genette qualifica as teorias que seguem esta interpretação como constitutivas ou essencialistas, assinalando que são de caráter fechado. A segunda, estabelece-se a partir da interrogação «à quelles conditions, ou dans quelles circonstances, un texte peut-il, sans modification interne, devenir une œuvre?»88. Esta seria, para Genette, uma interpretação condicionalista de literariedade. A sua sugestão consiste em substituir-se a pergunta o que é literatura? por «quand est-ce de la littérature?»89, tendo esta abordagem um caráter aberto.
A primeira interpretação pertence às teorias clássicas: certos textos são, na sua essência, e sempre, literários face a outros que não o são. A resposta depende dos critérios utilizados para diferenciar os textos literários dos que não o são – critério de literariedade constitutiva. Historicamente, têm vindo a ser utilizados dois tipos de critérios: o temático