A novela gráfica como género literário. Alexandra Dias
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Pierre Fresnault-Deruelle é o único investigador que no meio universitário francês se interessou pelo discurso crítico da banda desenhada. No ensaio «Semiotic Aproaches to Figurative Narration», de 1990, distingue quatro períodos sucessivos: a idade arqueológica da década de 1960, onde os autores, nostálgicos, descobrem as leituras da sua infância; a idade sócio-histórica e filológica da década de 1970, na qual a crítica organiza os textos nas suas variantes e reconstitui as suas filiações; a idade estruturalista da década de 1980; e a idade semiótica e psicanalítica da década de 1990110. Thierry Groensteen, que cita este estudo, subscreve de uma forma geral esta periodização, cujas categorias considera necessário combinar. Das quatro tendências distintas, nenhuma foi ←45 | 46→realmente abandonada; elas coexistem como vias divergentes ou paralelas, abertas à investigação, não se excluindo umas às outras, em particular a crítica temática e o estudo dos géneros, como o humor, o fantástico, o western, entre outros. Interessa-lhe particularmente o facto de Fresnault-Deruelle assinalar o aparecimento de um quinto estrato, o de uma crítica neo-semiótica onde o acento seria colocado sobre a dimensão poiética da banda desenhada, em que se inscreve a sua obra Système de la Bande Dessinée111. Esta obra é publicada em 1999, pela Presses Universitaires de France. O seu objetivo principal, e aquilo que a distingue, é considerar a banda desenhada enquanto linguagem e enquanto conjunto singular de mecanismos produtores de sentido. Esta linguagem não passará por uma apertada análise estrutural ou semiótica narrativa, como também não será tratada a questão do signo. Thierry Groensteen situar-se-á à margem da ortodoxia disciplinar da semiologia, apresentando uma proposta que designa como neo-semiótica112 inscrita na perspetiva macrossemiótica do Grupo μ. A leitura de diferentes investigadores convenceu o autor de que uma teoria da banda desenhada deve renunciar imperativamente a duas ideias comuns que, ainda que tenham inspirado a maior parte das abordagens semióticas, lhe parecem constituir um obstáculo à compreensão real deste assunto. A primeira, é a de que o estudo da banda desenhada, como o de qualquer outro sistema semiótico, deveria passar pela decomposição em unidades constitutivas elementares, e a segunda, a de que a banda desenhada seria essencialmente um misto de texto e imagem, uma combinação específica de códigos linguísticos e visuais, um local de reencontro entre duas «matérias de expressão» no sentido hjelmsleviano113. Opondo-se a estas conceções, Thierry Groensteen pretende demonstrar o primado da imagem e, por conseguinte, a necessidade de elaborar uma teoria sobre aquilo que designará como «códigos visuais». Salienta que não é central, na análise da linguagem da banda desenhada, a questão da existência ou não de signos visuais, pois os códigos mais importantes são os que concernem unidades maiores, mais elaboradas. Estes códigos governam a articulação, no tempo e no espaço, das unidades a que se dá o nome de «vinhetas» e obedecem a critérios tanto visuais como narrativos ou, mais corretamente, discursivos. Entrar no interior da prancha, dissecar a vinheta para enumerar os elementos icónicos ou plásticos de que a imagem se compõe, em seguida estudar os modos de articulação destes elementos, supõe uma grande devassidão de conceitos que não conduz a ←46 | 47→nenhum avanço teórico significativo. Groensteen está convencido de que não é abordando a banda desenhada ao nível do detalhe que se poderá chegar a uma descrição coerente e racional da sua linguagem. Antes pelo contrário, é abordando-a a nível das suas grandes articulações, isto é, das operações que consistem em organizar conjuntos de unidades que funcionam ao mesmo nível. O objetivo deve ser, pois, o de definir categorias suficientemente englobantes para que a grande maiori dos procedimentos linguísticos e dos elementos figurativos observáveis possa ser explicada por conceitos114.
Ao contrário de Alain Rey, que afirma, em Les Spectres de la Bande, que o essencial da banda desenhada reside na troca entre os valores textuais e figurativos115 no jogo criativo entre figuração e narratividade, e não entre imagem e texto116, Thierry Groensteen sustenta que é a solidariedade icónica o princípio fundador da banda desenhada e que é necessário reconhecer como único fundamento ontológico da banda desenhada a relação que se estabelece entre uma série de imagens solidárias, e que esta mesma relação admite diversos graus e conjuga diferentes operações. O autor define como solidárias as imagens que, participando de uma série, apresentam a dupla característica de serem fragmentadas, encerrando no seu seio uma série de temas ou histórias, e de serem plástica e semanticamente predeterminadas pela sua coexistência in praesentia.
A condição necessária para que se possa falar de banda desenhada é que as imagens existam em número múltiplo e se correlacionem entre si, mesmo que aquilo que se ofereça ao olhar seja sempre um espaço fragmentado, compartimentado, uma exposição de quadros justapostos117. Uma página de banda desenhada constitui uma unidade que tem de ser decifrada analiticamente. A leitura vinheta a vinheta não deixa de ter em conta a totalidade do campo panótico que constitui a página, ou a dupla página, porquanto a visão focal é enriquecida pela visão periférica. Enquanto objeto físico, toda a banda desenhada pode ser descrita como um conjunto de ícones independentes, mas solidários. Se considerarmos um determinado conjunto de pranchas de diferentes origens, apercebemo-nos que elas satisfazem esta condição mínima mas também que nem todas obedecem aos mesmos propósitos ou mobilizam os mesmos mecanismos118, razão pela qual Thierry Groensteen escolheu como conceito nuclear a noção de ←47 | 48→sistema, a fim de constituir um quadro conceptual onde todas as atualizações da nona arte podem ter lugar e ser pensadas em relação umas às outras, quanto às suas diferenças e semelhanças.
Groensteen define banda desenhada como uma combinatória original de uma (ou duas, com a escrita) matéria(s) de expressão e de um conjunto de códigos, sendo esta a razão que permite descrevê-la em termos de sistema, pois considera que aquilo que faz da banda desenhada uma linguagem única é, por um lado, a mobilização simultânea de um conjunto de códigos visuais e discursivos, e, por outro, o facto de esses códigos, que não lhe são exclusivos, se especificarem logo que são aplicados a uma matéria de expressão bem precisa como o desenho. O problema colocado ao investigador não é o de privilegiar este ou aquele código: é encontrar uma via de acesso ao interior do sistema, que permita explorá-lo na sua totalidade, e fazer surgir a sua coerência interna. O objetivo deve ser o de definir categorias suficientemente englobantes para que a maioria, ou a totalidade, de procedimentos linguísticos e de elementos figurativos observáveis possa ser explicada por conceitos119.
Groensteen propõe realizar este programa a partir das categorias espaciotopia, artrologia e entrelaçamento (tressage), todas elas dando conta das relações entre as imagens e identificando os códigos «tecidos» no seu interior que asseguram a sua dependência de uma cadeia narrativa, em situação de copresença espacial. Considerar a banda desenhada como um local de confronto entre o verbal e o icónico constitui uma posição teórica que conduz a um impasse. Se Groensteen defende que se conceda à imagem um estatuto proeminente, é pela simples razão de que ela ocupa na banda desenhada um espaço mais importante do que o reservado ao texto. O seu predomínio no seio do sistema prende-se com o facto de, no essencial, o sentido se produzir a partir da imagem.
Este investigador inaugura uma nova escola no âmbito do estudo da banda desenhada, ao assumir, numa perspetiva semiótica visual, uma nova abordagem dos fundamentos da linguagem e dos mecanismos produtores de sentido da nona arte, dissolvendo alguns dos equívocos em que assenta a sua tradicional teorização. Um desses equívocos é precisamente a subordinação da banda desenhada a conceitos oriundos da linguística cuja operatividade nem sempre se revela a mais adequada. Ainda que insistindo na necessidade de singularizar a linguagem da banda desenhada, Groensteen reconhece o paralelismo entre os processos desta arte e os do cinema, as duas formas narrativas em imagem por excelência. Em «Du Septième au Neuvième Art: L’Inventaire des Singularités», um dos seus ←48 | 49→ensaios de referência, estabelece um quadro de semelhanças e diferenças entre as duas artes, colocando em evidência a singularidade da banda desenhada, e mostra como os seus princípios funcionais se organizam num dispositivo que