Romancistas Essenciais - Lima Barreto. August Nemo
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Apanharam afinal o carreiro onde ficava a casa da Maria Rita. O tempo estivera seco e por isso se podia andar por ele. Para além do caminho, estendia-se a vasta região de mangues, uma zona imensa, triste e feia, que vai até ao fundo da baía e, no horizonte, morre ao sopé das montanhas azuis de Petrópolis. Chegaram à casa da velha. Era baixa, caiada e coberta com as pesadas telhas portuguesas. Ficava um pouco afastada da estrada. À direita havia um monturo: restos de cozinha, trapos, conchas de mariscos, pedaços de louça caseira - um sambaqui a fazer-se para gáudio de um arqueólogo de futuro remoto; à esquerda, crescia um mamoeiro e bem junto à cerca, no mesmo lado, havia um pé de arruda. Bateram. Uma pretinha moça apareceu na janela aberta.
— Que desejam?
Disseram o que queriam e aproximaram-se. A moça gritou para o interior da casa:
— Vovó estão aí dois "moços" que querem falar com a senhora. Entrem, façam o favor - disse ela depois, dirigindo-se ao general e ao seu companheiro.
A sala era pequena e de telha-vã. Pelas paredes, velhos cromos de folhinhas, registros de santos, recortes de ilustrações de jornais baralhavamse e subiam por elas acima até dois terços da altura. Ao lado de uma Nossa Senhora da Penha, havia um retrato de Vítor Emanuel " com enormes bigodes en desorden; um crini sentimental de folhinha - uma cabeça de mulher em posição de sonho - parecia olhar um São João Batista ao lado. No alto da porta que levava ao interior da casa, uma lamparina, numa cantoneira, enchia de fuligem a Conceição de louça.
Não tardou vir a velha. Entrou em camisa de bicos de rendas, mostrando o peito descarnado, enfeitado com um colar de miçangas de duas voltas. Capengava de um pé e parecia querer ajudar a marcha com a mão esquerda pousada na perna correspondente.
— Boas tardes, tia Maria Rita, disse o general.
Ela respondeu, mas não deu mostras de ter reconhecido quem lhe falava. O general atalhou:
— Não me conhece mais? Sou o general, o Coronel Albernaz.
— Ah! É sê coroné!... Há quanto tempo! Como está nhã Maricota?
— Vai bem. Minha velha, nós queríamos que você nos ensinasse umas cantigas.
— Quem sou eu, ioiô!
— Ora! Vamos, tia Maria Rita... você não perde nada... você não sabe o "Bumba-meu-Boi"?
— Quá, ioiô, já mi esqueceu.
— E o "Boi Espácio"?
— Coisa véia, do tempo do cativeiro - pra que sô coroné qué sabê isso?
Ela falava arrastando as sílabas, com um doce sorriso e um olhar vago.
— É para uma festa... Qual é a que você sabe?
A neta que até ali ouvia calada a conversa animou-se a dizer alguma coisa, deixando perceber rapidamente a fiada reluzente de seus dentes imaculados:
— Vovó já não se lembra.
O general, que a velha chamava coronel, por tê-la conhecido nesse posto, não atendeu a observação da moça e insistiu:
— Qual esquecida, o quê! Deve saber ainda alguma coisa, não é, titia?
— Só sei o "Bicho Tutu", disse a velha.
— Cante lá!
— Ioiô sabe! Não sabe? Quá, sabe!
— Não sei, cante. Se eu soubesse não vinha aqui. Pergunte aqui ao meu amigo, o Major Policarpo, se sei.
Quaresma fez com a cabeça sinal afirmativo e a preta velha, talvez com grandes saudades do tempo em que era escrava e ama de alguma grande casa, farta e rica, ergueu a cabeça, como para melhor recordar-se, e entoou:
É vêm tutu
Por detrás do murundu
Pra cumê sinhozinho
Com bucado de angu.
— Ora! fez o general com enfado, isso é coisa antiga de embalar crianças. Você não sabe outra?
— Não, sinhô. Já mi esqueceu.
Os dois saíram tristes. Quaresma vinha desanimado. Como é que o povo não guardava as tradições de trinta anos passados? Com que rapidez morriam assim na sua lembrança os seus folgares e as suas canções? Era bem um sinal de fraqueza, uma demonstração de inferioridade diante daqueles povos tenazes que os guardam durante séculos! Tornava-se preciso reagir, desenvolver o culto das tradições, mantê-las sempre vivazes nas memórias e nos costumes...
Albernaz vinha contrariado. Contava arranjar um número bom para a festa que ia dar, e escapava-lhe. Era quase a esperança de casamento de uma das quatro filhas que se ia, das quatro, porque uma delas já estava garantida, graças a Deus.
O crepúsculo chegava e eles entraram em casa mergulhados na melancolia da hora.
A decepção, porém, demorou dias. Cavalcânti, o noivo de Ismênia, informou que nas imediações morava um literato, teimoso cultivador dos contos e canções populares do Brasil. Foram a ele. Era um velho poeta que teve sua fama ai pelos setenta e tantos, homem doce e ingênuo que se deixara esquecer em vida, como poeta, e agora se entretinha em publicar coleções que ninguém lia, de contos, canções, adágios e ditados populares.
Foi grande a sua alegria quando soube o objeto da visita daqueles senhores. Quaresma estava animado e falou com calor; e Albernaz também, porque via na sua festa, com um número de folklore, meio de chamar a atenção sobre sua casa, atrair gente e... casar as filhas.
A sala em que foram recebidos, era ampla; mas estava tão cheia de mesas, estantes, pejadas de livros, pastas, latas, que mal se podia mover nela. Numa lata lia-se: Santa Ana dos Tocos; numa pasta: São Bonifácio do Cabresto.
— Os senhores não sabem, disse o velho poeta, que riqueza é a nossa poesia popular! que surpresas ela reserva!... Ainda há dias recebi uma carta de Urubu-de-Baixo com uma linda canção. Querem ver?
O colecionador revolveu pastas e afinal trouxe de lá um papel onde leu:
Se Deus enxergasse pobre
Não me deixaria assim:
Dava no coração dela
Um lugarzinho pra mim,
O amor que tenho por ela
Já não cabe no meu peito;
Sai-me pelos olhos afora
Voa às nuvens direito.
— Não é bonito?... Muito! Se os senhores conhecessem então o ciclo do macaco, a coleção de histórias que o povo tem sobre o símio?... Oh! Uma verdadeira epopéia cômica!
Quaresma