Romancistas Essenciais - Lima Barreto. August Nemo

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Romancistas Essenciais - Lima Barreto - August Nemo Romancistas Essenciais

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Eu quero ver isso... Todas dizem que não... Eu sei...

      Ela aludia à resposta que, à sua confidência, Ismênia tinha dado com parcimônia: qual o quê?

      Todas elas, conversando, tinham os olhos no piano. Os rapazes e uma parte dos velhos rodeavam Cavalcânti, muito solene, dentro de um grande fraque preto.

      — Então, doutor, acabou, hein? dizia este a jeito de um cumprimento.

      — É verdade! Trabalhei. Os senhores não imaginam os tropeços, os embargos - fui de um heroísmo!...

      — Conhece o Chavantes? perguntava um outro.

      — Conheço. Um crônico, um pândego...

      — Foi seu colega?

      — Foi, isto é, ele é do curso de medicina. Matriculamo-nos no mesmo ano.

      Cavalcânti ainda não tinha tido tempo de atender a este e já era obrigado a ouvir a observação de outro.

      — É muito bonito ser formado. Se eu tivesse ouvido meu pai, não estava agora a quebrar a cabeça no "deve" e "haver". Hoje, torço a orelha e não sai sangue.

      — Atualmente, não vale nada, meu caro senhor, dizia modestamente Cavalcânti. Com essas academias livres... Imaginem que já se fala numa Academia Livre de Odontologia! É o cúmulo! Um curso difícil e caro, que exige cadávares, aparelhos, bons professores, como é que particulares poderão mantê-lo? Se o governo mantém mal...

      — Pois doutor, acudia um outro, dou-lhe meus parabéns, Digo-lhe o que disse ao meu sobrinho, quando se formou: vá furando!

      — Ah! Seu sobrinho é formado? inquiria delicadamente Cavalcânti.

      — Em engenharia. Está no Maranhão, na estrada de Caxias.

      — Boa carreira.

      Nos intervalos da conversa, todos eles olhavam o novel dentista como se fosse um ente sobrenatural.

      Para aquela gente toda, Cavalcânti não era mais um simples homem, era homem e mais alguma coisa sagrada e de essência superior; e não juntavam à imagem que tinham dele atualmente, as coisas que porventura ele pudesse saber ou tivesse aprendido. Isto não entrava nela de modo algum; e aquele tipo, para alguns, continuava a ser vulgar, comum, na aparência, mas a sua substância tinha mudado, era outra diferente da deles e fora ungido de não sei que coisa vagamente fora da natureza terrestre, quase divina.

      Para o lado de Cavalcânti, que se achava na sala de visitas, vieram os menos importantes. O general ficara na sala de jantar, fumando, cercado dos mais titulados e dos mais velhos. Estavam com ele o Contra-Almirante Caldas, o Major Inocêncio, o doutor Florêncio e o Capitão de Bombeiros Sigismundo.

      Inocêncio aproveitou a ocasião para fazer uma consulta a Caldas sobre assunto de legislação militar. O contra-almirante era interessantíssimo, Na Marinha, por pouco que não fazia pendant com Albernaz no Exército. Nunca embarcara, a não ser na guerra do Paraguai, mas assim mesmo por muito pouco tempo. A culpa, porém, não era dele. Logo que se viu primeiro-tenente, Caldas foi aos poucos se metendo consigo, abandonando a roda dos camaradas, de forma que, sem empenhos e sem amigos nos altos lugares, se esqueciam dele e não lhe davam comissões de embarque. É curiosa essa coisa das administrações militares: as comissões são merecimento, mas só se as dá aos protegidos,

      Certa vez, quando era já capitão-tenente, deram-lhe um embarque em Mato Grosso. Nomearam-no para comandar o couraçado "Lima Barros". Ele lá foi, mas, quando se apresentou ao comandante da flotilha, teve notícia de que não existia no rio Paraguai semelhante navio. Indagou daqui e dali e houve quem aventurasse que podia ser que o tal "Lima Barros" fizesse parte da esquadrilha do alto Uruguai. Consultou o comandante.

      — Eu, no seu caso, disse-lhe o superior, partia imediatamente para a flotilha do Rio Grande.

      Ei-lo a fazer malas para o alto Uruguai, onde chegou enfim, depois de uma penosa e fatigante viagem. Mas aí também não estava o tal "Lima Barros". Onde estaria então? Quis telegrafar para o Rio de Janeiro, mas teve medo de ser censurado, tanto mais que não andava em cheiro de santidade. Esteve assim um mês em Itaqui, hesitante, sem receber soldo e sem saber que destino tomar. Um dia khe veio a idéia de que o navio bem poderia estar no Amazonas. Embarcou na intenção de ir ao extremo norte e quando passou pelo Rio, conforme a praxe, apresentou-se às altas autoridades da Marinha. Foi preso e submetido a conselho.

      O "Lima Barros" tinha ido a pique, durante a guerra do Paraguai.

      Embora absolvido, nunca mais entrou em graça dos ministros e dos seus generais. Todos o tinham na conta de parvo, de um comandante de opereta que andava à cata do seu navio pelos quatro pontos cardeais. Deixaram-no "encostado", como se diz na gíria militar, e ele levou quase quarenta anos para chegar de guarda-marinha a capitão-de-fragata. Reformado no posto imediato, com graduação do seguinte, todo o seu azedume contra a Marinha se concentrou num longo trabalho de estudar leis, decretos, alvarás, avisos, consultas, que se referissem a promoções de oficiais. Comprava repertórios de legislação, armazenava coleções de leis, relatórios, e encheu a casa de toda essa enfadonha e fatigante literatura administrativa. Os requerimentos, pedindo a modificação da sua reforma, choviam sobre os ministros da Marinha. Corriam meses o infinito rosário de repartiçôes e eram sempre indeferidos, sobre consultas do Conselho Naval ou do Supremo Tribunal Militar. Ultimamente constituíra advogado junto à justiça federal e lá andava ele de cartório em cartório, acotovelando-se com meirinhos, escrivães, juízes e advogados - esse poviléu rebarbativo do foro que parece ter contraído todas as misérias que lhe passam pelas mãos e pelos olhos.

      Inocêncio Bustamante também tinha a mesma mania demandista. Era renitente, teimoso mas servil e humilde. Antigo voluntário da pátria, possuindo honras de major, não havia dia em que não fosse ao quartel-general ver o andamento do seu requerimento e de outros. Num pedia inclusão no Asilo dos Inválidos, noutro honras de tenente-coronel, noutro tal ou qual medalha; e, quando não tinha nenhum, ia ver o dos outros.

      Não se pejou mesmo de tratar do pedido de um maníaco que, por ser tenente honorário e também: da Guarda Nacional, requereu lhe fosse passada a patente de major, visto que dois galões mais outros dois fazem quatro - o que quer dizer: major.

      Conhecedor dos estudos meticulosos do almirante, Bustamante fez a sua consulta.

      — Assim de pronto, não sei. Não é a minha especialidade o Exército, mas vou ver. Isto também anda tão atrapalhado!

      Acabando de responder coçava um dos seus favoritos brancos, que lhe davam um ar de "comodoro" ou de chacareiro português, pois era forte nele o tipo lusitano.

      — Ah! meu tempo, observou Albernaz. Quanta ordem! Quanta disciplina!

      — Não há mais gente que preste, disse Bustamante.

      Sigismundo por aí aventurou também a sua opinião, dizendo:

      — Eu não sou militar, mas...

      — Como não é militar? fez Albernaz, com ímpeto. Os senhores é que são os verdadeiros: estão sempre com o inimigo na frente, não acha, Caldas?

      — Decerto, decerto, fez o almirante cofiando os favoritos.

      — Como ia dizendo, continuou Sigismundo, apesar de não ser militar, eu me animo a dizer que a nossa

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