A Vida No Norte. Tao Wong
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— Que raio? — Não há tempo para fazer mais nada, apenas pude começar a refilar com ele, porque a formiga, atraída pelas pequenas artimanhas do idiota, vira-se para mim e, passado um pequeno momento de hesitação, avança diretamente para mim. Levanto o bastão de caminhada e avanço, na esperança de o usar como lança.
Sim, não faço esgrima e isto também não é uma espada. A ponta desliza inofensivamente e a formiga já está em cima de mim, a empurrar-me contra o chão e a tentar arrancar-me a cabeça com as suas mandíbulas.
Levanto-me com esforço e começo a espernear, antes de a conseguir tirar de cima de mim. Felizmente, a minha mochila ajuda um bocadinho e o ângulo não me deixa ficar deitado, até consegui que a formiga ficasse debaixo de mim, quando a atirei. Em cima da formiga, estico-me todo e espeto-lhe o bastão no pescoço, mantendo-o fixo com um braço, enquanto procuro desesperadamente pela minha faca de sobrevivência. Demoro um pouco a encontrá-la no cinto e, depois, passo alguns minutos a espetá-la desenfreadamente, até a criatura não se mexer.
Estou sujo, malcheiroso e cheio de entranhas de formiga. Não quero saber de nada disso, apenas me levanto, completamente furioso.
— Que raio foi aquilo?
— Um treino — o Ali encolhe os ombros, descontraído. — Tinhas de passar de nível. Aquela era uma formiga de Nível 1. Nunca conseguirias encontrar uma presa tão fácil. Vais apanhar o teu saque?
— Tu, tu, tu… — gaguejo. Viro-me para a formiga e dou-lhe alguns pontapés para descarregar a frustração e o medo acumulados. Depois de passar a adrenalina, deixo-me cair ao lado do corpo, antes de finalmente me aperceber do que ele disse. — Saque?
— Pousa a tua mão na formiga e pensa ou diz “saque”.
Obedeço e pestanejo quando surge uma janela. Estico a mão e pego no saque que está à minha frente, enquanto faço uma careta. Um naco de carne de formiga.
— Põe no teu inventário, estúpido.
Já desisti de questionar as coisas impossíveis que estão a acontecer e obriguei-me a aceitar tudo isto. Quando penso no inventário, surge uma grelha de cinco por cinco. Ao pôr a minha mão na grelha, a carne aparece dentro dela, preenchendo um espaço. Pergunto-me se será acumulável.
— Boa – começo a abrir a mochila, quando sou interrompido.
— Não vale a pena. Só os itens gerados pelo Sistema podem ficar no inventário – comenta o Ali, enquanto continua a andar à minha volta.
— Que aldrabice! — resmungo. Continuo com a mochila posta e observo o resto do corpo da formiga. Suponho que este mundo não tenha uma engenhoca para dissolver corpos.
Passaste de Nível!
Chegaste ao Nível 2 de Guarda de Honra de Erethran. Os pontos foram distribuídos automaticamente. Tens 3 atributos livres por distribuir. As habilidades de classe estão bloqueadas.
É estranho a notificação só ter aparecido agora. Paro e olho para o Ali, que me levanta o polegar. Ele está a ocultá-las até ser uma boa altura para as ver. Quando acordei, fiquei bastante desiludido ao ver que a experiência que tinha acumulado não me tinha feito passar de nível, nem mesmo para um Nível 2. Mas o Ali tinha explicado que as classes Avançadas tinham requisitos de experiência mais avançados. Bastou-me olhar para os pontos de estatística gratuitos para os despejar a todos na Sorte. Sim, eu sei que podia fazer coisas mais inteligentes com os pontos, como maximizar a minha Agilidade ou talvez a minha Força, para ficar todo-poderoso.
Contudo, quem quer que pense isso, não teve a minha vida. Se a minha estatística de Sorte está assim tão baixa, isso explica muitas coisas do meu passado. Eu nem sequer estaria em Yukon, se o meu apartamento não tivesse ardido uma semana depois de perder o meu trabalho como programador, o que me levou a vir para aqui com a minha namorada da altura. Também foi uma bela porcaria, o que aconteceu entre nós. O raio da companhia de seguros não aceitou os meus pedidos, o que me deixou sem absolutamente nada, a não ser umas poupanças miseráveis. Em vez de ir para casa envergonhar o meu pai, peguei na mala e mudei-me para um novo território. Preferia morrer a ver o meu pai envergonhado. Agora que tenho a oportunidade de reencaminhar algum carma negativo ou o destino, vou aproveitar.
— Sabes que não é esse tipo de sorte, certo?
Sou superior a ele. Sou superior a ele. Sou superior a ele. Mostro-lhe o dedo do meio, continuo e voltamos a ficar sérios.
***
Durante o resto do dia, fui descendo cautelosamente, evitando criaturas gigantes e bastante ubíquas sempre que pude e, ocasionalmente, matando-as, quando não o conseguia. Matá-las não foi uma decisão minha, mas, depois de uma negociação apressada, eu e o Ali chegámos a um consenso. Ele ficou de me avisar de quaisquer monstros de nível baixo que encontrássemos e eu iria atacá-los e matá-los, se o conseguisse fazer de forma segura. Por sua vez, ele não me iria obrigar a nada, desde que eu me esforçasse a sério. Se estivesse no exército, teria de lhe chamar sargento. Como não estou, chamo-lhe apenas idiota.
As coisas só se tornaram mesmo assustadoras uma vez. Estava a andar sob o que achava serem árvores e apercebi-me de que eram as pernas do que apenas posso descrever como um ogre gigante. Felizmente, ele falhou o primeiro golpe e, depois de o fazer acreditar que estava a correr pela colina abaixo, ativei o MFQ e corri pela colina acima, passando por ele. Passei a meia hora seguinte a vê-lo correr, a derrubar árvores e a esmagar monstros que apareciam no seu caminho. Nunca tive tanto medo na vida, principalmente porque a dieta do ogre parecia consistir em qualquer coisa que tivesse carne.
Por outro lado, tinha de lhe agradecer pela minha morte de nível mais elevado, uma raposa cuja coluna foi esmagada por uma árvore que caiu. O saque só consistiu em mais órgãos e no pelo dela, mas não me queixo da experiência gratuita e do saque.
Gostaria de dizer que passei o resto do dia a descer a colina com dificuldade, a esforçar-me de forma heroica, apesar da exaustão e do medo. Mas, às três da tarde, estava acabado. Estar constantemente com a adrenalina elevada, a esconder-me e a recuar incessantemente, tinha-me esgotado e eu sabia que se continuasse assim, iria cometer um erro. Não estava a fazer um bom tempo, de todo, mal tinha percorrido metade do caminho que tinha de fazer. Quando encontrei uma pequena depressão que estava relativamente bem escondida, desisti simplesmente. Tirei o meu telemóvel e tentei ligá-lo. Permaneceu desligado e olhei para o Ali.
— Não te dês ao trabalho. Os aparelhos eletrónicos são sempre os primeiros a morrer quando o Mana no ambiente chega a este ponto. Se não estiver protegido ou não for feito para funcionar com Mana, nada sobrevive — explica o Ali.
— Bolas! Todos os aparelhos? — questiono e ele acena. Raios, isso deve significar que a maioria dos veículos recentes está morto, juntamente com a Internet, os telemóveis e a maioria das comodidades modernas. Esfrego a testa, guardo o telemóvel e encolho-me, decidido a descansar durante uns minutos. Devo ter adormecido porque, quando dei por mim, eram 19 horas.
— Porquê nós? — perguntei ao Ali, enquanto fazia o jantar com as minhas provisões do campismo.
— São flocos de neve únicos, os humanos. Completamente únicos com um potencial sem limites — o Ali, que estava a vigiar lá fora, responde sem olhar para mim.