A Vida No Norte. Tao Wong
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Suspiro, esfregando os olhos. Ainda há tanto para ler, tanto para aprender sobre este estranho mundo novo. Quero ler mais, mas já não consigo lutar contra a exaustão e os meus olhos começam a fechar-se.
Capítulo 3
Parabéns. Sobreviveste um dia inteiro! Os humanos são mesmo uma raça excelente. Apenas 60% de vocês morreram, ontem. Estamos impressionados. Merecem um biscoito. E alguma experiência. Lembrem-se, os monstros vão aumentar durante a próxima semana.
— 60%! — fecho os olhos, enquanto a minha mente tenta processar o significado daquele número. 60%, mais de quatro mil milhões de mortos. 60%, seis em cada dez pessoas que já conheci estão mortas. Seis em dez ... Isso significa que a minha família está morta, uma vez que eu estou vivo. Este último pensamento faz-me respirar com dificuldade, um abismo de dor a surgir. Tenho evitado pensar neles, no que este Sistema significa para o mundo, mas, com este anúncio, o sofrimento, a raiva e o arrependimento estão a acumular-se. O abismo de dor e as emoções conturbadas aumentam ainda mais, antes de serem afastadas e postas de lado, reprimidas. Não tenho tempo para lidar com isto agora, tenho coisas para fazer, a minha própria existência para manter.
— Sabes, chorar é considerado algo muito masculino nas culturas de Kraska. Se bem que eles parecem os vossos crocodilos terrestres — o Ali flutua acima de mim e observa como lido com os meus pensamentos, antes de fazer desaparecer a notificação. — Vamos, rapaz!
— Dá-me um momento — murmuro.
— Não vais mesmo chorar, pois não? — pergunta o Ali, virado de cabeça para baixo, completamente aborrecido.
— Não, não vou — afirmo com confiança. Consigo sentir o sofrimento, se me concentrar nele. Tal como a maioria das minhas emoções, está silenciado, como se houvesse um cobertor pesado sobre uma coluna. Está ali, apenas difícil de aceder. É o suficiente para eu funcionar, pelo menos, no geral. Mas consigo perceber, mesmo assim, que o sofrimento se está a misturar com a maré de raiva em que vivo.
Raiva...
— Ali, encontra algo para eu matar — afirmo calmamente e levanto-me com a mochila na mão. — Encontra montes de coisas para eu matar — por uma vez, o Ali não me responde e faz o que lhe peço.
***
— Está morto — o Ali tenta apaziguar-me, quando dou uma última facada no esquilo-terrestre. Talvez tenha exagerado um bocadinho, o animal está desfeito. Ainda bem que a função de saquear não tem em consideração o estado do corpo da criatura e deu-me o prémio sem as feridas de faca bastante sórdidas.
— Ali, como é que consigo uma arma melhor? — observo a minha faca e a criatura. Felizmente, satisfiz os meus desejos de miúdo e escolhi uma faca de mato. Para dizer a verdade, era demasiado apenas para acampar, mas estava numa fase de Rambo quando a comprei. Agora, é a minha única arma. Bem, isso e uma lata de spray contra ursos.
— Na Loja do Sistema. É num local seguro gerado pelo Sistema que, atualmente, só existe em Whitehorse. Mas vais ter de vender o teu saque para a conseguir, a não ser que ganhes alguns créditos do Sistema, algo que apenas os sencientes recebem — o Ali continua a explicação. — Ainda tens de deitar cá para fora os teus sentimentos?
— Vamos sair daqui — abano a cabeça, a raiva finalmente a acalmar. Não sei bem o que diz sobre mim, o facto de ter descarregado naquelas criaturas. Mas, por agora, vou evitar pensar nisso. Já vamos a meio da manhã e ainda não consegui fazer muitas mortes. Caçar está a tornar-se cada vez mais perigoso, uma vez que até as criaturas da Terra se estão a mutar a um ritmo mais acelerado, superando o meu nível e a minha faca patética.
— Muito bem, miúdo, o mesmo de ontem — o Ali faz sinal para o caminho e eu sigo as indicações dele.
***
Com a faca empunhada à minha frente, salto e atiro-me para baixo. O MFQ desativa-se no último segundo, quando enfio a faca na cabeça da lebre americana. Espero ter acertado em algo importante, visto que a lebre é do tamanho de um cavalo, mas muito mais larga. Ela vira a cabeça e é apenas um bocado de pelo que agarrei à pressa que me mantém em cima dele, enquanto lhe espeto a faca repetidamente na parte de trás da cabeça e do pescoço.
Um minuto depois, tinha feito estragos suficientes para a lebre cair, morta. Há alguns momentos, ela tinha finalmente conseguido tirar-me de cima dela, esmagando-me contra um pinheiro, partindo-me o ombro e fazendo-me soltá-la. Deitado no chão, cheio de dores, não consigo deixar de pensar porque teria o Ali insistido tanto para eu lutar contra a lebre. Dou voz aos meus pensamentos, enquanto os ossos regeneram e voltam ao sítio. Ao forçar-me a sentar debaixo de uma árvore e ao tirar outra barra de chocolate da mochila, sinto-me feliz por trazer sempre demasiado chocolate comigo.
— Lebre? Achava que era um coelho — o Ali olha com desagrado, flutuando por cima da criatura. — Bolas! E eu que queria dizer: “Não se passa nada, meu”.
***
— Baixa-te!
Deito-me no chão e sou atirado para o lado, quando a criatura vai contra a minha mochila. Estamos a descer a montanha a um bom ritmo, com o Ali a avisar-me da chegada de monstros. Rebolo, ficando frente a frente com uma bola de pelo raivosa com demasiados dentes. Enfio o bastão de caminhada na barriga dele e a criatura começa automaticamente a morder a vara de metal. Estou a fazer força, pregando a criatura ao chão, quando esta começa a sufocar.
— Mexe-te!
Salto, soltando o bastão, quando outro monstro felpudo me ataca do outro lado. Estava demasiado focado em matar o primeiro. Ataco com a minha faca, cortando o pelo áspero e afasto-me aos tropeções, a agitar a arma desesperadamente.
— À tua direita — o Ali avisa e olho para a direita, usando as costas da mão para atacar o terceiro monstro Tribble. O golpe acerta-lhe e ele vai a rebolar pela colina. O segundo monstro aproveita a minha breve distração como um sinal para me morder a perna e eu grito de dor, espetando-o com a minha faca uma e outra vez, até ele me libertar.
Afasto-me, coxeando para onde o primeiro monstro felpudo continua a asfixiar e a tossir e mato-o, pisando a criatura repetidamente, até esta parar de respirar.
— Atrás de ti outra vez — avisa o Ali, já aborrecido.
Viro-me, levantando o braço a tempo de o deixar morder o meu antebraço, em vez da minha cara, e depois começo a esfaqueá-lo até à morte.
— Bem, essa é uma forma de matar monstros. Tenta não os deixar morder tanto, na próxima luta — o Ali salienta, prestavelmente, e eu olho furioso para ele, enquanto saqueio as bolas de pelo. A sério, cotão? É esse o meu saque? Cotão? Mas o que esperava de bolas de pelo? Atiro-as para o inventário com uma careta e começo a coxear em direção a um riacho que me lembro de ser aqui perto.
Lavo a minha roupa o melhor que consigo no riacho, com o Ali a vigiar, por cima de mim. Trabalho depressa,