Mestres da Poesia - Mário de Andrade. Mário de Andrade
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42 Lirismo: estado efetivo sublime — vizinho da sublime loucura. Preocupação de métrica e de rima prejudica a naturalidade livre do lirismo objetivado. Por isso poetas sinceros confessam nunca ter escrito seus milhores versos. Rostand por exemplo: e, entre nós, mais ou menos, o sr. Amadeu Amaral. Tenho a felicidade de escrever meus milhores versos. Milhor do que isso não posso fazer.
43 Ribot disse algures que inspiração é telegrama cifrado transmitido pela atividade inconsciente à atividade consciente que o traduz. Essa atividade consciente pode ser repartida entre poeta e leitor. Assim aquele que não escorcha e esmiuça friamente o momento lírico; e bondosamente concede ao leitor a glória de colaborar nos poemas.
44 "A linguagem admite a forma dubitativa que o mármore não admite". Renan.
45 "Entre o artista plástico e o músico está o poeta, que se avizinha do artista plástico com a sua produção consciente, enquanto atinge as possibilidades do músico no fundo obscuro do inconsciente”. De Wagner.
46 Você está reparando de que maneira costumo andar sozinho...
47 Dom Lirismo, ao desembarcar do Eldorado do Inconsciente no cais da terra do Consciente, é inspecionado pela visita médica, a Inteligência, que o alimpa dos macaquinhos e de toda e qualquer doença que possa espalhar confusão, obscuridade na terrinha progressista. Dom Lirismo sofre mais uma visita alfandegária, descoberta por Freud, que a denominou Censura. Sou contrabandista! E contrário à lei da vacina obrigatória.
48 Parece que sou todo instinto... Não é verdade. Há no meu livro, e não me desagrada, tendência pronunciadamente intelectualista. Que quer você? Consigo passar minhas sedas sem pagar direitos. Mas é psicologicamente impossível livrar-me das injeções e dos tônicos.
49 A gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que meu inconsciente não sabe da existência de gramáticas, nem de línguas organizadas. E como Dom Lirismo é contrabandista...
50 Você perceberá com facilidade que si na minha poesia a gramática às vezes é desprezada, graves insultos não sofre neste prefácio interessantíssimo. Prefácio: rojão do meu eu superior. Versos: paisagem do meu eu profundo.
51 Pronomes? Escrevo brasileiro. Si uso ortografia portuguesa é porque, não alterando o resultado, dá-me uma ortografia.
52 Escrever arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto. Si estas palavras freqüentam-me o livro não é porque pense com elas escrever moderno, mas porque sendo meu livro moderno, elas têm nele sua razão de ser.
53 Sei mais que pode ser moderno artista que se inspire na Grécia de Orfeu ou na Lusitânia de Nun'Alvares. Reconheço mais a existência de temas eternos, passíveis de afeiçoar pela modernidade: universo, pátria, amor e a presença-dos-ausentes, ex-gozo-amargo-de-infelizes.
54 Não quis também tentar primitivismo vesgo e insincero. Somos na realidade os primitivos duma era nova. Esteticamente: fui buscar entre as hipóteses feitas por psicólogos, naturalistas e críticos sobre os primitivos das eras passadas, expressão mais humana e livre de arte.
55 O passado é lição para se meditar, não para reproduzir. "E tu che sé costí, anima viva, Partiti da cotesti che son morti”.
56 Por muitos anos procurei-me a mim mesmo. Achei. Agora não me digam que ando à procura de originalidade, porque já descobri onde ela estava, pertence-me, é minha.
57 Quando uma das poesias deste livro foi publicada, muita gente me disse: "Não entendi”. Pessoas houve porém que confessaram: “Entendi, mas não senti”. Os meus amigos... percebi mais duma vez que sentiam, mas não entendiam. Evidentemente meu livro é bom.
58 Escritor de nome disse dos meus amigos e de mim que ou éramos gênios ou bestas. Acho que tem razão. Sentimos, tanto eu como meu amigos, o anseio do farol. Si fôssemos tão carneiros a ponto de termos escola coletiva, esta seria por certo o “Farolismo". Nosso desejo: alumiar. A extrema-esquerda em que nos colocamos não permite meio-termo. Si gênios: indicaremos o caminho a seguir; bestas: naufrágios por evitar.
59 Canto da minha maneira. Que me importa si me não entendem? Não tenho forças bastantes para me universalizar? Paciência. Com o vário alaúde que construi, me parto por essa selva selvagem da cidade. Como o homem primitivo cantarei a principio só. Mas canto é agente simpático: faz renascer na alma dum outro predisposto ou apenas sinceramente curioso e livre, o mesmo estado lírico provocado em nós por alegrias, sofrimentos, ideais. Sempre hei-de achar também algum, alguma que se embalarão à cadência libertária dos meus versos. Nesse momento: novo Anfião moreno e caixa-d'óculos, farei que as próprias pedras se reunam em muralhas à magia do meu cantar. E dentro dessas muralhas esconderemos nossa tribo.
60 Minha mão escreveu a respeito deste livro que “não tinha e não tem nenhuma intenção de o publicar”. Jornal do Comércio, 6 de Junho. Leia frase de Gourmont sobre contradição: 1º volume das Promenades Littéraires. Rui Barbosa tem sobre ela página lindíssima, não me recordo onde. Há umas palavras também em João Cocteau, La Noce Massacrée.
61 Mas todo este prefácio, com todo o disparate das teorias que contém, não vale coisíssima nenhuma. Quando escrevi Paulicéia Desvairada não pensei em nada disto. Garanto porém que chorei, que cantei, que ri, que berrei Eu vivo!
62 Aliás versos não se escrevem para leitura de olhos mudos. Versos cantam-se, urram-se, choram-se. Quem não souber cantar não leia Paisagem n.° 1. Quem não souber urrar não leia Ode ao Burguês. Quem não souber rezar, não leia Religião. Desprezar: A Escalada. Sofrer: Colloque Sentimental. Perdoar: a cantiga do berço, um dos solos de Minha Loucura, das Enfibraturas do Ipiranga. Não continuo. Repugna-me dar a chave de meu livro. Quem for como eu tem essa chave.
63 E está acabada a escola poética. “Desvairismo”.
64 Próximo livro fundarei outra.
65 E não quero discípulos. Em arte: escola = imbecilidade de muitos para vaidade dum só.
66 Poderia ter citado Gorch Fock. Evitava o Prefácio Interessantíssimo. “Toda canção de liberdade vem do cárcere”.
Inspiração
"Onde ate na força do verão havia
tempestades de ventos e frios de crudelíssimos inverno”
Fr. Luis de Sousa
São Paulo! comoção de minha vida...
Os meus amores são flores feitas de original!...
Arlequinal!... Trajes de losangos... Cinza e ouro...
Luz e bruma... Forno e inverno morno...
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...
Perfumes