Olhos negros atravessaram o mar. Maria Cristina Francisco
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2 “Hert Hellinger estudou filosofia, teologia e pedagogia e trabalhou durante 16 anos como membro de uma ordem missionária católica junto aos zulus na África do Sul. Mais tarde, estudou psicanálise e chegou, através da dinâmica de grupo, da terapia primal, da análise transacional e de diferentes processos hipnoterapêuticos à sua própria terapia familiar e sistêmica. Com o desenvolvimento de sua forma condensada de constelações familiares, Bert Hellinger conseguiu ampliar as possibilidades de intervenção terapêutica que, hoje em dia, é alvo de muito respeito também no âmbito internacional. A atuação de Hellinger ultrapassa em muito a sua área, pois ele transmite de maneira clara e compreensível aspectos essenciais sobre as ordens do amor e da vida” (NEUHAUSER, 2006, primeira orelha da capa).
APRESENTAÇÃO
Sempre é um desafio escrever. Neste caso, quem escreve é uma pessoa que se tornou negra e fala de um lugar da sua própria vivência. A experiência não está pautada apenas no setting terapêutico e na teoria, mas também em uma experiência viva cotidiana. Dessa maneira, a voz não está terceirizada - há apropriação do tema e da fala.
À medida que me dedicava à escrita, fui percebendo que realmente não tenho a experiência pessoal (nem poderia tê-la) do que foi viver os momentos de terror de ser capturado e impedido de ser e viver sua própria vida. Aqui me refiro ao processo de escravização do povo negro. No entanto, posso dizer que sei do sofrimento que se perpetua até hoje nos descendentes, pela negação da sua humanidade, pelas oportunidades de trabalho restritas, pela imposição de uma condição subalterna ou por serem posicionados fora do centro de decisões no espaço organizacional, ou ainda por viverem sob a tensão da violência policial e da humilhação.
Escrever, para mim, está sendo um ato político, por dar à luz o sofrimento e a dor de pessoas negras. Certamente, quando trago a história e o sofrimento psíquico, trago junto o conhecimento. Como diz a professora Diva Guimarães, mulher negra de 72 anos, na FLIP 20173 e na entrevista no Programa Espelho4: “Para que o país mude, ele precisa de conhecimento”; “O racismo e o preconceito matam”; “Eu só me salvei pela educação”. Relata no início dessa entrevista que se tornou outra pessoa, se libertou quando deu voz a um sofrimento guardado durante seus 72 anos de vida, um silêncio reprimido que somente a atrapalhou.
Dar visibilidade a essa realidade silenciada é ter a intenção de modificar uma reprodução de comportamento, de pensamento, mesmo sendo difícil fazer tal enfrentamento, pois todos nós nos esquivamos desse labirinto de emoções, de culpa, vergonha, raiva, medo. Ao escrever você visita suas entranhas, seus mais profundos sentimentos, e no meu caso, tornou-se uma busca por mudança, ou seja, por dar notoriedade ao olhar e à voz, lugares julgadores diante da cor da epiderme, atitude que pode determinar a subserviência de um corpo diante do outro.
Esses olhares e vozes opressores podem atingir violentamente a espontaneidade. Vivemos, no aspecto social, um Brasil de raças e de total desigualdade. Essa desigualdade gera intenso sofrimento físico e emocional para o indivíduo e para a sociedade em toda a sua complexidade. Uma sociedade marcada em sua formação pela invasão e opressão da colonização e da escravidão por mais de três séculos. Com a abolição da escravatura, em 13 de maio de 1888, não houve políticas públicas de reparação desse injusto sistema social de produção, e sofremos o peso dessa realidade e suas consequências até os dias atuais: violência e criminalidade, desemprego, educação precária, falta de acesso a serviços públicos de qualidade, preconceito, discriminação, com sequelas na vida psíquica e corporal.
Há quase cinco anos, venho desenvolvendo um trabalho particularmente focado em um grupo de pessoas que têm identificação com sua negritude, envoltas com a história da diáspora africana5 junto a este país. Está revelada nos discursos dos participantes a conexão com esse passado, com esse indescritível crime praticado por séculos contra a humanidade, por meio da fala, gestos, olhares, comportamentos - evidências de dor na presença da angústia e sintomas no corpo. As emoções que abalam diariamente esse corpo evidenciam marcas, cicatrizes de açoites rotineiros; revelam conflitos, crenças, tomando forma através de hábitos e somatização de doenças.
Além desse grupo, também acompanho como psicoterapeuta pessoas brancas, que não trazem para o espaço terapêutico especificamente a problemática racial da pessoa negra, mas também sofrem com a violência de um mundo desigual. Não percebem por indiferença, por conforto num mundo privilegiado, por falta de interesse, por não enxergarem que a condição do outro é desigual e o quanto a atitude preconceituosa e discriminatória reproduz essa desigualdade. Nunca pensaram em sua condição de branco, pois está naturalizada como uma suposta normalidade. O diferente é o outro, não sou eu. Não há consciência do quanto estamos todos implicados na hierarquia racial.
Essa negação tem consequências: a invisibilidade branca e a invisibilidade negra. Ambas diferentes no contexto e no contato social - para um, o privilégio, e para o outro, a exclusão. Em virtude dessa implicação de todas as raças em nossa formação social, uso a expressão “relações raciais”. Toda essa movimentação relacional, direcionada pela invisibilidade, fará morada no corpo, reproduzindo angústia e dor, certamente muito mais para quem está depreciado no ambiente, na sociedade.
Por ser analista de Bioenergética e de Biossíntese
- práticas psicoterapêuticas que incluem a observação do corpo, sua forma de agir, exercícios, respiração e a verbalização -, não poderia iniciar de outra maneira senão apresentando esse corpo. O preconceito e a discriminação vividos ao longo da vida foram-me conduzindo à consciência racial, porém, frisada na inferioridade, constituindo-me negra nesse lugar. Essa conscientização das emoções emergidas da violência do racismo tornaram-se mais claras durante minha formação, através dos exercícios corporais no Instituto de Análise Bioenergética de São Paulo (IABSP).
À medida que minha representação social foi mudando ao assumir posições de protagonismo, o racismo foi-se revelando mais intenso. Houve um momento em que foi necessário estar entre iguais. Com a ajuda de alguns professores, chegamos até o Instituto AMMA Psique e Negritude6, e integrar o grupo foi transformador por muitos motivos:
1 Estar entre pares oferece um lugar de pertencimento; o que se fala não causa estranhamento.
2 Ter a oportunidade de estar em contato com conhecimento histórico, social, político e psíquico sobre o tema.
3 Participar ativa e politicamente de várias atividades.
Nos anos 1990, integrando o quadro de funcionários da Prefeitura Municipal de São Paulo como psicóloga, coordenando um grupo psicoterapêutico com pessoas portadoras do vírus HIV, notamos o quanto era importante a troca de experiências entre iguais por resgatar a humanidade promovida pela identificação, antes fragilizada pelo estigma da doença, pela solidão surgida da discriminação nas relações e pela segregação social diante do medo da revelação de um diagnóstico.
Os exercícios corporais bioenergéticos e os de biossíntese levavam ao resgate do corpo estigmatizado na prática de um dos principais conceitos utilizado em ambas as escolas, o grounding, favorecendo a consciência e a importância de estar conectado consigo, com sua trajetória de vida. Ser acolhido e visibilizado propiciou o resgate da beleza do corpo, mesmo modificado pelos efeitos colaterais dos antirretrovirais. Uma vez conscientes da própria existência humana, estávamos chegando a uma atitude de bem-estar e promovendo a adesão ao tratamento. Com o corpo subjetivo fortalecido, os pacientes puderam ampliar horizontes, traçar novos projetos, antes marcados pela finitude iminente a que o HIV os condicionaria.