Olhos negros atravessaram o mar. Maria Cristina Francisco

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Olhos negros atravessaram o mar - Maria Cristina Francisco

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da pele. Corpo estigmatizado, discriminado, invadido, segregado, ocasionando a mesma dor da solidão e do silêncio gerador de sofrimento psíquico. A desconfiança na relação era o sentimento presente; resgatar o vínculo relacional tornou-se um desafio, vínculo a ser fortalecido com a frequência do contato, com a possibilidade de dar voz à história pessoal e de vivenciar o olhar acolhedor do outro à sua volta.

      Para conhecer a enfermidade psíquica, em se tratando do campo psicológico, deve-se conhecer a história que a condicionou. Assim é que a história da formação social no Brasil é apresentada neste texto. Um país desde o início brutalizado pela violência dos invasores/colonizadores e pelo roubo de sua natureza, exterminando os povos originários desta terra, seus verdadeiros donos, e posteriormente sendo habitada por pessoas traficadas da África com a clara intenção de conquista pela exploração e domínio neste local tropical, rico e bonito por sua natureza, constantemente violada. Em seguida, povoando o país com a entrada de imigrantes europeus.

      Revelar a forma de dominação por meio da colonização e escravidão denuncia a condição mais cruel e perversa que se impõe a um ser humano. Um dos maiores holocaustos populacionais. Uma história que não deve ser repetida, mas lembrada, pois os ventos do passado trazem valores e crenças para o quintal de cada um. Não sendo varridos, esses ventos sedimentam cada chão, deixando marcas que impregnam nosso psiquismo, nossas atitudes e fala, assumindo variadas formas, perpetuando seu modo dominador de funcionamento.

      No campo psíquico e corporal, trazemos os recursos na atuação com o corpo como transformadores de uma realidade injusta, cruel, sem pausa e sem repouso, ou seja, de encarnar os ideais do sujeito branco e de recusar, negar e anular a presença do corpo negro.

      O corpo humano, independentemente da sua tonalidade de cor de pele, irá se comunicar dentro de um contorno estrutural defensivo. Devemos atentar para o quanto a experiência com a violência cruel do racismo cotidiano e as marcas transgeracionais traumáticas da escravidão e colonialismo, com suas crenças e valores reproduzidos por anos através das gerações, orquestrarão as resistências desse corpo negro ao se ver e estar no mundo.

      O leitor notará que, em determinados momentos da escrita, faço uso do pronominal “eu”, com a intenção de protagonizar a pessoa que fala e, por vezes, de compartilhar a própria experiência. Em outros momentos, será usado o “nós”, revelando na narrativa o envolvimento com o coletivo, retirando-nos da singularidade e posicionando-nos numa composição da qual verdadeiramente todos fazemos parte, mesmo estando em lugares vivenciais diferentes.

      Durante o transcorrer do texto, utilizamos os termos “indivíduo”, “sujeito” e “pessoa”. “Indivíduo”, quando consideramos o ser humano de modo particularizado em sua sociedade. Usamos a palavra “sujeito” seguindo o pensamento psicanalítico, como alguém que sofre a ação das tramas relacionais desde o seu nascimento, constituindo-se na relação com o outro, tornando-se sujeito através da linguagem, envolvido nas dinâmicas institucionais, como família e sociedade. A palavra “pessoa” é utilizada para o ser racional, consciente de si, com identidade própria.

      3 A FLIP - Festa Literária Internacional de Paraty - Rio de Janeiro, Brasil, acontece desde 2003 e oferece experiências voltada à literatura. Disponível em: https://www.flip.org.br/.

      4 Programa Espelho - Canal Brasil (Artes e Cultura) - Temporada 11, episódio 258, concebido pelo ator e autor Lázaro Ramos, 2017. Disponível em: https://globosatplay.globo.com/canal-brasil/espelho/ .

      5 José Antonio dos Santos, professor, doutor e pesquisador da história e da cultura negra no Brasil Republicano e da diáspora africana nas Américas conceitua a palavra diáspora e seu processo: “A palavra diáspora foi originalmente usada no Antigo Testamento para designar a dispersão dos judeus de Israel para o mundo. Recentemente, tem-se aplicado o mesmo vocábulo, por analogia à condição judaica, aos movimentos dos povos africanos e afrodescendentes, no interior do continente negro ou fora dele. A diáspora traz em si a ideia do deslocamento que pode ser forçado, como na condição de escravo, resultado de guerras, perseguições políticas, religiosas ou desastres naturais. Também pode ser uma dispersão incentivada ou espontânea de grandes massas populacionais em busca de trabalho ou melhores condições de vida. [...] O sociólogo inglês Paul Gilroy insere-se no debate, trazendo à tona a noção de diáspora como um processo dinâmico, multifacetado, o qual rompe com aquelas ideias cristalizadas que tomam a diáspora africana como um fenômeno preso ao passado. Ao contrário, ele cria a metáfora do Atlântico Negro para entender a estrutura transnacional criada na modernidade e que deu origem ao sistema de comunicações globais definido pelo ir e vir de pessoas, informações e mercadorias que redefiniram novos padrões e trocas culturais” (SANTOS, 2008, p. 181 e 185).

      6 Instituto AMMA Psique e Negritude – deus AMMA, espírito fecundador, verbo original, inaugurador de todas as coisas – é simbolizado por um pote envolto por uma espiral de cobre vermelho em três voltas. É uma organização não governamental cuja atuação é pautada pela convicção de que o enfrentamento do racismo, da discriminação e do preconceito se faz necessariamente por duas vias: politicamente e psiquicamente.

      Foi fundado em 1995 por um grupo de psicólogas e ativistas, comprometidas e familiarizadas com o enfrentamento político, que constataram que somente a via política não seria suficiente. Desde então, o Instituto tem buscado, por meio de formação e prática clínica, identificar, elaborar e desconstruir o racismo e seus efeitos psicossociais. Ver: http://www.ammapsique.org.br/.

      1

      INTRODUÇÃO

      O opressor tem que ser libertado tanto quanto o oprimido. Um homem que tira a liberdade de outro homem é um prisioneiro do ódio, está preso atrás das grades do preconceito e da pobreza de espírito. Ser livre não significa apenas se livrar de suas algemas, mas sim viver de uma maneira que respeite e reforce a liberdade dos outros (MANDELA, 2012, citação no Prefácio).

      Ao introduzirmos os diversos pensamentos implicados nesta escrita, revelamos que o pensamento não está envolvido na separação mente-corpo, indivíduo-sociedade. A subjetividade se entrelaça com a objetividade. Esse posicionamento baseado no pensamento dialético possibilita reunir o sistema político, social, econômico e psíquico, que se enredam produzindo movimento, bem como possibilita buscar modificação mútua no inter-relacional e no interior de cada um.

      O histórico social faz ancoragem na vida psíquica humana, no seu modo de pensar e agir. Necessidades podem ser manipuladas pela linguagem e, segundo os interesses do sistema vigente, estão carregadas de significados, com seus valores transmissores de ideias e intenções de determinada ordem social. Estamos muito distantes da natureza baseada na subsistência. Comunidades indígenas e quilombolas estabelecem uma relação mais integrada e respeitosa com a terra, pautada na lógica coletiva, numa prática comunitária com base na subsistência. Nós vivemos desenraizados, numa sociedade do cansaço, priorizando ter a posse e o poder sobre a terra, e não afirmamos que somos pertencentes da terra.

      [...] As enfermidades psíquicas são a consequência do caos sexual da sociedade. Durante milhares de anos, esse caos tem tido a função de sujeitar psiquicamente o homem às condições dominantes de existência e de interiorizar a dinâmica externa da vida. Tem ajudado a efetuar a ancoragem psíquica de uma civilização mecanizada e autoritária, tornando o homem incapaz de agir independentemente (REICH, 1975, p. 14).

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