Olhos negros atravessaram o mar. Maria Cristina Francisco
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As justificativas falaciosas do sistema colonizador usaram do conceito de inferioridade para separar negros e nativos (emocionais) do branco (racionais) e para implantar a dominação. No mínimo, houve uma concepção do indígena como primitivo e ingênuo e do negro como inferior e submisso, em oposição ao branco como superior, dotado de razão, intelectualidade e beleza.
Não somos opostos e nem deveríamos ser hierarquizados racialmente. As singularidades são fonte de enriquecimento. A grandeza da natureza e da sobrevivência está na diversidade e na sua interação. Segundo a maioria dos cientistas, a hipótese sobre a origem da existência humana tem um único lugar, o continente africano, posteriormente migrando para outros continentes. Outros sustentam a ideia de que a evolução ocorreu em regiões separadas. Entretanto, acompanhamos a pesquisa do Dr. Yuval Noah Harari, doutor em história, em seu best-seller Sapiens – uma breve história da humanidade, no qual apresenta a seguinte cronologia:
2,5 milhões - Evolução do gênero Homo na África. Primeiras ferramentas de pedra.
2 milhões – Humanos se espalham na África para a Eurásia. Evolução de diferentes espécies humanas.
500 mil – Surgem os neandertais na Europa e no Oriente Médio.
300 mil – Uso cotidiano do fogo.
200 mil – surge o Homo sapiens na África Oriental.
70 mil – Revolução Cognitiva. Surge a linguagem ficcional. Começo da história. Os sapiens se espalham a partir da África (HARARI, 2016, p. 7).
Na escravidão, na intenção de “domesticar”, os corpos negros, assim como ocorreu com os povos originários, passaram a se tornar mercadoria produtiva. Destituído de sua humanidade, seu corpo humano sofreu as consequências da violência traumática imposta por séculos, gerando reações emocionais e ações defensivas de sobrevivência.
O mito da democracia racial no Brasil, de um povo conhecido e admirado por sua (suposta) cordialidade entre “os diferentes”, vem caindo por terra. O véu que encobria o preconceito e a discriminação em nossa sociedade vem sendo desvendado nos últimos tempos. A fúria do pensamento racista, as ideias destrutivas da homofobia e o desprezo por mulheres e indígenas saíram do fosso, da lama em que se escondiam, pois continuamos como nas guerras das conquistas, atuando por meio da violência e da manifestação de poder.
Como ideologia, a formação da sociedade brasileira foi construída na oposição e na singularidade mediante uma diferença hierarquizada, além da utilização da violência como um marcador de controle, o que é reproduzido até os dias atuais. A sociedade relacional e institucional brasileira foi moldada nesse pensamento de segregação e se comporta conforme essa condição.
Portanto, essa história não diz respeito apenas aos negros e aos indígenas, como muitos pensam. Não há unilateralidade. O racismo segrega, desmembra o corpo negro na tentativa de ele negar a si mesmo. Dita espaços que privilegiam grupos e, com isso, eleva a desigualdade social e econômica, reproduz a hierarquia racial e limita oportunidades, sem haver possibilidade de mudança. Resulta ser necessário negros e brancos brasileiros lidarem com esse desconforto no plano político e na posição subjetiva, encararem a realidade do passado e seus modos atuais. Não foram apenas os antepassados de mercadores e de escravizados que viveram diretamente essa realidade; nós todos somos impactados e implicados quando reproduzimos esse comportamento, crivando nosso olhar para o negro na condição de inferiorizado e para o branco na condição de superioridade e poder.
É um desafio denunciar o racismo, pois muitos não desejam a mudança com relação a esse fato. No entanto, como afirma Stengel a partir do pensamento de Nelson Mandela:
Ninguém nasce preconceituoso ou racista. Nenhum homem, ele sugere, é mal no coração. O mal é algo instalado ou ensinado aos homens pelas circunstâncias, pelo meio ambiente ou pela formação. Não é inato. O apartheid tornou os homens maus; o mal não criou o apartheid (STENGEL, 2010, p. 79).
Atualmente é notório que as pessoas negras vivem uma sensível melhora socioeconômica, assumindo mais seu protagonismo. No entanto, essa ainda não é uma condição da maioria. Mesmo assim, elas têm procurado ajuda pessoal para tratar da sua subjetividade frente ao racismo. A maioria das pessoas brancas não trabalha essa temática racial; o corpo permanece refratário, sem expressão verbal de uma possível angústia. Experienciam uma vida cotidiana privilegiada, tão naturalizada muitas vezes, sem a consciência das relações hierarquizadas racialmente, que elas, como brancos, não se dão conta de que fazem parte do processo como raça branca.
Essa questão está fora dos consultórios, dos debates e das agendas públicas institucionais e privadas majoritariamente, por uma série de motivos. Um deles seria a negação e o medo de os brancos não quererem se deparar com a realidade, mantendo seus privilégios, acomodados dentro de uma bolha narcísica, cegando a visão, não querendo perceber e responsabilizar-se pelas consequências dessa condição social privilegiada.
Nesta escrita, uma das preocupações e objetivos ao tratar das relações raciais é como tocar o coração das pessoas e sensibilizar os profissionais. Tentar não cair na armadilha da vítima; buscar falar e não soar repetitiva para alguns; encontrar um lugar humanizado em que o leitor possa se impactar. Trataremos de um tema silenciado e dramático, desconfortável para alguns, alvo constante de desqualificação para outros, porém necessário, pois o racismo como violência toma formas diversas, atualizando-se dentro da sua época e lugar, nos mais diversos ambientes e regiões no mundo.
Na questão racial, é necessário libertar o corpo do sofrimento e tensão. A dominação expressa o desejo de controle, infantilizando esse corpo na dependência e subjugação, conduzindo à humilhação e ao sentimento de vergonha. A autonomia e a libertação passam pelo resgate corporal em toda sua forma de comunicação, tratando dessa ferida que sangra, resgatando a leveza.
No corpo do ativista/militante, nas mais diversas áreas de atuação, incansável na luta por equidade, o sofrimento é sinalizado intensamente frente à experiência e à consciência da injustiça, bem como pela falta do autocuidado, pelo manejo interno e solitário dos afetos e pela proximidade do tema na vida pessoal. É importante trazer para reflexão no ambiente ativista que “o pessoal realmente é político” (BARRY; DJORDEVIC, 2007, p. 5). Dar prioridade para a consciência e expressão emocional e espiritual, incluí-lo faz parte do resgate da autoestima e da resistência na luta política.
Nota-se que o corpo precisa endurecer-se defensivamente e, contraditoriamente, irá fragilizar-se. Navegar as emoções torna-se arenoso, denso, tenso, diante de tamanha carga. A autonomia e a libertação passam pela necessidade de flexibilização corporal como forma de lidar com as defesas psíquicas. O racismo restringe, fixa os movimentos do corpo. Será necessário resgatar a vida que foi aprisionada. O psicoterapeuta precisa estar atento a esse cuidado na relação.
Trazemos o trabalho corporal ligado à tomada de consciência da realidade social para promover um corpo transgressor, ativo, a fim de resgatar sua humanidade