Olhos negros atravessaram o mar. Maria Cristina Francisco

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Olhos negros atravessaram o mar - Maria Cristina Francisco

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O racismo se utiliza dessa lógica classificatória relacional na pretensão de dominar ou exterminar um povo.

      A escravidão humana ocorre de diferentes formas desde a Antiguidade e é praticada por várias civilizações, como pelos povos que guerreavam entre si e faziam dos perdedores seus prisioneiros e mulheres como escravas sexuais, ou ao lhes retirar os direitos em todos os sentidos. Alinhada às necessidades sociais de cada época, a escravização posteriormente tornou-se um valor econômico. Consolidadas as justificativas para validar o comércio de humanos, escravizar passou a representar o maior lucro encontrado para o enriquecimento e o tráfico passou a ser a mais próspera das práticas mercantis da época. Assim, ampliou-se a possibilidade de expandir a escravização, sendo Portugal o principal país na massificação do comércio do tráfico atlântico.

      No início do século XVI, as populações indígenas já eram submetidas ao trabalho forçado nos engenhos de açúcar, não sem antes guerrear e tentar livrar-se dos invasores. Mas, com o declínio dessa população devido à violência colonial – costumes e tradições violadas, desumanização, crueldade, desprezo pela vida humana, contágio por doenças trazidas pelo homem branco -, a África seria o local encontrado para traficar mais mão-de-obra. Países como Portugal, Espanha e posteriormente Inglaterra, Holanda e França tinham como destino o Caribe e América do Norte; Dinamarca, Prússia, Suécia também foram fomentando os cativeiros. Antes do tráfico negreiro, o destino dos vencidos nas tribos do continente africano costumava ser a morte em combate ou o aprisionamento.

      A constituição social de um país se conhece através da sua organização socioeconômica, seu modo de produção. No século XVI, no Brasil, ocorreu o regime escravista colonial português, que durou até 1888, portanto por 354 anos, e marca ainda hoje profundamente a vida cotidiana brasileira, estruturada a partir das relações de mando e obediência.

      [...] Do século XVI até 1850 no período colonial e no imperial, o país foi o maior importador de escravos africanos nas Américas. Foi ainda a única nação independente que praticou maciçamente o tráfico negreiro, transformando o território nacional no maior agregado político escravista americano [...] (ALENCASTRO, 2018, p. 57).

      Quase seis milhões de africanos traficados de diversos países desse continente passaram a viver em terras brasileiras. Com esse imenso contingente humano e uma sociedade com os brancos em minoria, o recurso da violência se sustentou como marcador de intimidação e dominação.

      Propriedade e sujeição pessoal. A escravidão é uma categoria social que, por si mesma, não indica um modo de produção. Como escravidão doméstica – forma exclusiva sob a qual existiu em vários povos – sua função é improdutiva. Mesmo com função produtiva, a escravidão pode aparecer de maneira mais ou menos acidental e ser meramente acessória de relações de produção de tipo diferente. No entanto, desde que se manifesta como tipo fundamental e estável de relações de produção, a escravidão dá lugar não a um único, mas a dois modos de produção diferenciados: o escravismo patriarcal, caracterizado por uma economia predominantemente natural, e o escravismo colonial, que se orienta no sentido da produção de bens comercializáveis. [...] cabe indagar o que caracteriza a escravidão como categoria sociológica.

      A característica mais essencial, que se salienta no ser escravo, reside na condição de propriedade de outro ser humano (GORENDER, 1985, p. 46).

      Sobre a experiência de estar no navio negreiro, trazemos relatos do romance Um defeito de cor.

      [...] O navio tinha dois porões, e o de baixo, onde fomos colocadas, era um pouco menor. Também não tinha qualquer entrada de luz ou de ar.

      [....] Os tocheiros iluminavam rapidamente o caminho e os rostos dos que chegavam, acompanhados da ordem de nos deitarmos um ao lado do outro, com as cabeças apoiadas na parede do navio, que déssemos uma volta completa. E depois mais uma volta no interior, e mais uma terceira, sendo que muitos ainda sobraram de pé e foram empurrados por cima dos que já estavam deitados. [....].

      Durante dois ou três dias, não dava para saber ao certo, a portinhola no teto não foi aberta, ninguém desceu ao porão e estava quase impossível respirar. Algumas pessoas se queixavam da falta de ar e do calor, mas o que realmente incomodava era o cheiro de urina e de fezes. [....]. As pessoas enjoaram inclusive nós, que vomitamos o que não tínhamos no estomago, pois não comíamos desde o dia da partida. O corpo também doía, jogado contra o chão duro, molhado e frio. [....]. Quando uma pessoa queria se mexer, as que estavam ao lado dela também tinham que se mexer, o que sempre era motivo de protestos. [....].

      Os guardas colocaram os homens em fila e, um por um, tiveram que dizer o nome africano, o que podia ser revelado, e é claro, e o lugar onde tinham nascido, que eram anotados em um livro onde também acrescentavam um nome de branco. Era esse nome que eles tinham que falar para o padre, que então jogava água sobre suas cabeças e pronunciava algumas palavras que ninguém entendia.

      [....] Alguém lembrou que o padre também tinha dito que, a partir daquele momento, eles deviam acreditar apenas na religião dos brancos. [....].

      [...] Talvez tivessem nos deixado tantos dias sem comer para que, mesmo com raiva, ficássemos suficientemente fracos para não reagir. [....] Cada um recebeu a sua parte (carne salgada, farinha e feijão). Cada um recebeu a sua parte em cumbucas de casca de coco, e foram distribuídas algumas vasilhas de água que passaram de mão em mão e não foram suficientes nem para metade de nós, tamanha a sede. Mas, na manhã seguinte, três homens apareceram mortos, tinham se enforcado durante a noite. [....].

      [....] e nos dias seguintes outras pessoas adoeceram. [....]. Alguns diziam que era porque estávamos ali havia muitos dias, no meio daquela imundície toda, respirando um ar que não era de gente respirar, sem ver o sol, sem tomar chuva, sem nos lavarmos, sem comer e sem beber água direito. [....] Olharam pela portinhola aberta no teto e logo mandaram fechar. Voltaram mais tarde, com os rostos cobertos por panos [....]. Somente os olhos deles estavam de fora, e percebi que tinham um olhar de nojo e medo. [....] Escolheram alguns homens mais fortes e fizeram com que eles tirassem dali mais dez pessoas, todas muito doentes, que depois soubemos terem sido jogadas ao mar.

      [....] A comida começou a apodrecer por todo o chão do navio, porque muitos, e eu também, já não tínhamos mais apetite, e ao cheiro dela se juntava o cheiro de xixi, de merda, de sangue, de vômito e de pus. Acho que todos nós já queríamos morrer no dia em que abriram a portinhola e mandaram que nos preparássemos para sair. [....].

      [....] Tentei me levantar e caí várias vezes antes de conseguir me manter de pé, não só por causa da fraqueza, mas porque as pernas pareciam ter se desacostumado do peso do corpo, sempre deitado. [....].

      [....] Foi só à luz do dia que percebi como parecíamos bichos, sujos e feios...[....].

      [....] Não sei dizer o que senti, se tristeza, se felicidade por continuar viva ou se medo.

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