Olhos negros atravessaram o mar. Maria Cristina Francisco

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Olhos negros atravessaram o mar - Maria Cristina Francisco

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Muitas vezes foram colocados na roda dos expostos (abandonados) das instituições religiosas e foram vendidos. Com os vínculos afetivos e de amor rompidos, gerou-se maior mortalidade infantil, muitas vezes por fome e alimentação inadequada. Quando seu bebê permanecia consigo, seu trabalho era dobrado e o bebê branco era prioridade. Mesmo com melhor alimentação e vestuário, o cansaço era extenuante e cruel.

      Diante das condições exploratórias, as doenças eram agravadas por carências nutricionais e pelo trabalho extenuante e castigos. Certamente não incidiam apenas nessa população, no entanto, dependendo do tipo de doença, pode-se associar uma doença ao tipo de trabalho a que se está submetido. Havia uma rede de solidariedade horizontal entre os iguais, com confiança principalmente nos curandeiros. O tratamento vinha do conhecimento e da religiosidade ancestrais e do uso de ervas medicinais. Na metade do século XIX, surgiram nas cidades casas de saúde e maternidade, onde passaram a ser admitidos.

      Alguns que conseguiam comprar sua liberdade faziam diversas tarefas, como de carregadores de liteiras, barbeiros, curadores; negociavam frutas ou fabricavam doces caseiros e refrescos; faziam a prática de sangradores – sangrar e aplicar sanguessugas e ventosas. Podiam ser “escravos de ganho”, alugados, emprestados; vendiam de tudo para “seus senhores e/ou sinhás”, e algumas mulheres eram parteiras.

      No estado de São Paulo, a população foi formada pelo povo indígena, pelo branco e pelo negro, e a formação da população integrada por esses povos esteve engendrada no processo de trabalho escravizado desde o início do século XVI. No final do século XVIII, o estado passou a ser o local apropriado para o plantio e produção do café e, em 1870, já abrigava a terceira maior população escravizada negra do país.

      O processo de abolição da escravatura no Brasil foi gradual. Houve muita luta e pressão da sociedade através de libertos, abolicionistas e simpatizantes à causa. Iniciou com a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, seguida pela Lei do Ventre Livre, de 1871, a Lei dos Sexagenários, de 1885, e foi finalizada pela Lei Áurea. Essa lei foi apresentada formalmente ao Senado Imperial por Rodrigo Augusto da Silva, em 11 de maio de 1888. Sofreu influência da Guerra do Paraguai, pois os negros lutaram nesse período e passaram a ser vistos como “irmãos de arma” (TORAL, 1995).

      Sancionada a Lei Áurea (Lei Imperial n.º 3.353, sancionada pela princesa regente do Brasil Dona Isabel, em 13 de maio de 1888, no Rio de Janeiro), colocando fim ao trabalho forçado, abruptamente mudou-se um regime. Podemos notar nos dois artigos da lei:

      Art. 1º É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil.

      Art. 2º Revogam-se as disposições em contrário – Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888 (BRASIL, 1888).

      Não houve políticas públicas de educação, saúde ou habitação para inclusão dessa população na sociedade. Com o povo nas ruas sem nenhuma reparação, inclusive psíquica, a reprodução da condição imposta de exclusão por centenas de anos continua a existir, e nas elites revela-se o medo de conflitos e de mudanças em sua posição social de privilégios.

      Após um ano da abolição da escravatura, o Império se enfraquece e a ideia de República se fortalece. Em uma das estrofes do Hino da Proclamação da República citada abaixo, nota-se a intenção dos republicanos em “esquecer” a barbárie da escravidão. Assim, percebe-se que não houve elaboração desse processo, e o silêncio opressor, a surdez e a cegueira da visão passaram a ser estratégias defensivas de negação da realidade.

      Nós nem cremos que escravos outrora

      Tenha havido em tão nobre País...

      Hoje o rubro lampejo da aurora

      Acha irmãos, não tiranos hostis.

      Somos todos iguais! Ao futuro

      Saberemos, unidos, levar

      Nosso augusto estandarte que, puro,

      Brilha, avante, da Pátria no altar!

      (HINO DA PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA).

      Sem o tráfico humano, o povo antes escravizado estava envelhecendo e a mão-de-obra tornava-se insuficiente. Uma vez que a maioria da população era composta por descendentes de africanos e negros, certos intelectuais, preocupados com a construção da identidade nacional, optaram pela vinda de imigrantes europeus brancos para “melhorar” os brasileiros, com o ideal do branqueamento.

      Mas o mais impressionante sobre a população livre de cor no Brasil, em comparação com os regimes escravistas das Índias Ocidentais e dos Estados Unidos, é o seu rápido crescimento e o tamanho desse segmento populacional, que superava a população escrava total do início do século XIX. No primeiro censo nacional do Brasil, em 1872, a população livre de cor somava 4,2 milhões de pessoas, contra 1,5 milhão de escravos, o que significa que as pessoas livres de cor representavam 74% da população total não branca. A população livre de cor não só superava numericamente a população branca, mas, sozinha, representava 43% da população brasileira, que era de 10 milhões de pessoas. No fim da escravidão nos Estados Unidos, as pessoas livres de cor correspondiam a apenas 11% da população total não branca e a somente 3% da população nacional (KLEIN, 2018, p. 190).

      Segundo a professora Giralda Seyferth, em seu artigo “Colonização, Imigração e a questão social no Brasil” (2002, p. 117-149), a questão imigratória dos europeus ao Brasil estava em discussão desde 1818, na intenção de civilizar a nação com um novo modelo econômico, distinto do baseado em grandes propriedades e com diversificação da agricultura. No século XIX na Europa, difundiam-se os ideais do racismo científico, e intelectuais tentavam defender isso. Com esse propósito, passou-se a pensar a imigração com um duplo objetivo: branquear e europeizar o país. Consequentemente, com a vinda dos europeus, os negros libertos foram substituídos e preteridos pelo mercado de trabalho, empurrados para a margem da sociedade (bairros periféricos, com o início da formação das favelas). Ocorreu a exclusão de um povo que contribuiu para o desenvolvimento desta nação por séculos, sem nenhuma preocupação política de estabelecer critérios para diminuir a desigualdade entre os grupos formadores da sociedade brasileira. Na verdade, sem sequer considerar a contribuição do povo negro nessa formação.

      Com o golpe militar em 1964, instalando-se a ditadura no Brasil,

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