Olhos negros atravessaram o mar. Maria Cristina Francisco

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Olhos negros atravessaram o mar - Maria Cristina Francisco

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não há prazer sem consciência. O prazer como sensação de bem-estar e plenitude sem consciência é um descuido, nos sujeita à vulnerabilidade e à manipulação. Nossas decisões deveriam estar alinhadas às necessidades internas, do contrário, serão governadas pelo imediatismo, a impulsividade. Caminhos que levam a autonomia e independência estão fundados no conhecimento da realidade, na ciência da forma como se apresentam.

      Apresentadas essas condições, é importante frisar que a solidão se intensifica no silêncio. Um velho desafio se apresenta: “Lutar na vida e enfrentar a si mesmo”. Como estratégia, o Grupo Ponto de Encontro, de que tratarei especificamente mais adiante, surgiu em março de 2015, em São Paulo, com a proposta de propiciar um espaço de conversa, troca de ideias e reflexões sobre a experiência de cada um em relação à negritude, visando melhor fortalecimento da identidade, dialogando com os conceitos e técnicas da Bioenergética e da Biossíntese. É uma proposta política e subjetiva, espaço e lugar de fala.

      Na possibilidade de libertar o corpo negro de uma condenação que vem se estendendo por tempos e tempos, encontramos como referencial teórico e técnico o pensamento reichiano, no qual são consideradas as manifestações físicas frente às experiências de dor. Por meio da observação da respiração, Reich percebeu que, para suportar situações dolorosas, defensivamente desenvolvemos uma resistência, nomeada como armadura ou couraça muscular. No entanto, paradoxalmente ela pode exercer efeitos paralelos ao desejado nas relações, comprometendo a espontaneidade. Essas diversas defesas receberão classificações designadas como traços de caráter, e cada qual singularmente apresentará características energéticas corporais que se apresentam no modo de pensar, sentir e agir.

      Esse conceito se amplia com novas possibilidades de intervenção corporal através da Análise Bioenergética de Alexander Lowen. Com técnicas e exercícios baseados no grounding, busca-se a expressão emocional; com a respiração ampliada, restabelecer o movimento do corpo; e com a vibração, atingir a espontaneidade. Da Biossíntese de David Boadella, utilizam-se os conceitos de grounding, centering e facing, que se associam aos três processos formativos embrionários - respectivamente, mesoderma, endoderma e ectoderma -, possibilitando compreender, dentro desse complexo campo organizacional humano, a sua experiência existencial. Revela-se em Boadella seu pensamento sistêmico, no qual o homem encontra-se em processo constante com a natureza, com suas significações e transcendência, principalmente a espiritualidade.

      Compreendemos o racismo como uma vivência traumática. No referencial teórico, trazemos o psiquismo nas significações do corpo negro através de Frantz Omar Fanon (1925-1961), nascido na Ilha da Martinica, psiquiatra, filósofo, que trabalhou o tema da psicopatologia da colonização. Ele apresenta o pensamento de que a construção da noção de negro vem de fora da África. Nos países desse continente, não haveria razão para tal reflexão. Essa noção foi construída num determinado contexto social, enunciada em ideais que pudessem justificar o tráfico negreiro como modo de dominação e o racismo. Denuncia que o racismo rompe a relação dialética entre o Eu e o Outro e, como consequência, ocorre que quase tudo é permitido contra as pessoas negras.

      Nessa condição, Fanon (2008, p. 26) dirá “[...] que o negro não é um homem. Há uma zona de não-ser [...]”. Ele foi sendo desenraizado, condenado, alojado na condição de que “[...] o negro é um homem negro” (2008, p. 26) ou seja, retirado do sentido de humanidade, constituído na ideia de inferioridade e na negação da sua cor negra, e sendo conduzido à neurose e à melancolia na modernidade, configurando uma perda de não poder ser o que ou quem é. O branco prefere ter uma imagem de si como não racista, mas tendo uma atitude oposta, e o negro olha sem se ver ou buscando um reflexo branco, comprometendo sua formação como sujeito.

      Narciso. Narciso tornou-se uma metáfora para alguém que se vê a si e o seu próprio corpo, como os objetos de amor.

      Narcisismo, narcisismo é o amor direcionado à imagem de si próprio; a excessiva admiração pela própria aparência; e a incapacidade de amar ou reconhecer outros, como objetos de amor.

      Narcisista, narcisista é esta sociedade branca patriarcal na qual todos nós vivemos, que é fixada em si própria e na reprodução de sua própria imagem, tornando todos os outros invisíveis.

      Eu, eu estou rodeada de imagens que não espelham o meu corpo. Imagens de corpos brancos, com sorrisos perfeitos, sempre a olharem-se a si próprios, e a reproduzirem a sua imagem como o objeto ideal de amor.

      [....] Como Fanon escreveu: ‘Tanta brancura, que me queima...’

      [....] Neste narcisismo, pessoas marginalizadas dificilmente encontram imagens, símbolos ou vocabulário para narrar a sua própria história, ou para nomear o seu próprio trauma (KILOMBA, 2019a, p. 13-16).

      Nessa mesma linha relativa à vivência traumática, a referência teórica se apresenta na tese defendida pela Dra. Joy Angela DeGruy, estadunidense, bacharel em Comunicação, doutora em Serviço Social e mestre em Psicologia Clínica. Ela argumenta que a devastação da escravidão, na longa extensão de tempo, desenvolveu uma lesão duradoura que surge como dor psíquica e tem forte impacto em nossa alma. Trouxe consequências psicossociais para os descendentes dos escravizados e para os descendentes dos escravizadores. Há um impacto multifacetado da escravidão na vida do negro, como nos relacionamos com o mundo e com os outros. Esses ciclos de opressão deixam cicatrizes em nós mesmos e na psique coletiva, sendo transmitidos de geração em geração, roubando nossa humanidade. Aborda a questão assim:

      A autora relata que, apesar da violência vivida, os descendentes tendem a suavizar a memória. Para ela, estamos perigosamente mal-informados e deveríamos estudar com rigor a história e suas consequências, pois reside nesse espaço a esperança de um presente mais saudável e autoafirmativo. Como ilustração, introduz na reflexão o símbolo africano Sankofa, de um conjunto de ideogramas chamados Adinkra, que significa Volte e Pegue (san – voltar / retornar, ko – ir e fa – olhar, buscar e pegar). Acredita que devemos olhar e afirmar o passado, avançando em direção ao nosso futuro através da compreensão de quem nós éramos, acolhendo esse lugar. Defende seu pensamento com a pesquisa epigenética, considerando o quanto o meio ambiente pode influenciar na nossa genética e como os corpos podem alojar memórias do passado. Examina as características do trauma e as manifestações dos sintomas usando critérios de diagnóstico atual – Diagnostic Criteria for Post traumatic Stress Disorder – PTSD (DEGRUY, 2017, p. 98-99). Pessoas sob exposições consideradas traumáticas, diante da experiência repetida diretamente, apresentam quadros comuns a episódios vivenciados pelos negros da diáspora africana durante séculos de tortura, como ameaças de morte, de violência sexual, como também ao serem testemunhas pessoais da violência cometida.

      Nessa violência traumática, como se tornar negro diante desse tsunami colonizador que se desloca por territórios, formando ondas gigantescas e provocando catástrofes diante da força da sua amplitude? Buscamos o pensamento da brasileira, baiana, psiquiatra, pesquisadora e psicanalista Neusa Santos Souza. No livro Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, ela traz um olhar fundamental sobre a experiência de ser negro numa sociedade branca, na “[...] tentativa de elaborar um gênero de conhecimento que viabilize a construção de um discurso do negro sobre o negro, no que tange a emocionalidade” (SOUZA, 1983, p. 17). No prefácio a essa obra de Neusa Santos Souza, o psicanalista Jurandir Freire Costa diz que a autora denuncia o racismo como violência em três pontos: 1. tenta destruir a identidade do sujeito negro, internalizando o ideal do sujeito branco; 2. estabelece, por meio do preconceito de cor,

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