Olhos negros atravessaram o mar. Maria Cristina Francisco

Чтение книги онлайн.

Читать онлайн книгу Olhos negros atravessaram o mar - Maria Cristina Francisco страница 6

Серия:
Издательство:
Olhos negros atravessaram o mar - Maria Cristina Francisco

Скачать книгу

as contribuições deste texto, tentamos principalmente desencarcerar esse corpo sequestrado por séculos. Considero uma atitude de dimensão política desconstruir essas amarras alojadas no corpo, que são os efeitos de um ideal colonizador.

      De ambos os lados não estamos neutros; estamos todos envolvidos no mesmo enredo. Ao recebermos uma pessoa de cor de pele na qual se evidencia a miscigenação com descendentes do continente africano, nosso imaginário se apresenta; somos atingidos pelos nossos registros internos, pela nossa história pessoal e social. É importante olhar, ter clareza disso e não fugir desse imaginário construído, carregado de preconceitos. O inconsciente dos presentes, cliente e terapeuta / analisando e analista, estará dentro do campo psicoterapêutico. Num país racializado, as dimensões da diversidade, singularidade, especificidade e subjetividade estão memorizadas pelas experiências. O corpo do profissional deveria estar receptivo para qualificar sua escuta, compreendendo o lugar relacional que ocupa a fim de dar abertura e credibilidade ao espaço para que se desvele a presença das experiências perversas das tramas do racismo.

      “Decifra-me ou te devoro”, desafio da Esfinge de Tebas: nos relatos verbais, nos gestos, nas atitudes, tentamos decifrar o enigma que devora a identidade, mina as forças e a possibilidade de sucesso daquele que vive a crueldade do racismo. Conhecer a si mesmo para não ser refém de suas emoções e crenças é premissa para libertar-se das armadilhas, do modo de reprodução e das percepções distorcidas em que estamos todos enredados. O racismo está carregado de nuances de sofisticação e perversidade construídas à medida que o tempo passa; ele se atualiza nos mais diversos ambientes, relacionamentos familiares, de amizade e profissionais, reproduzindo a hierarquia de poder, o preconceito e a discriminação.

      Na prática clínica, notamos os efeitos psíquicos que atravessam o corpo da pessoa negra frente ao racismo. Na fala, sempre há um lugar de solidão, raiva, exaustão, tensão por estar alerta constantemente, por não saber o que virá no contato com outro, pela dificuldade de compartilhar com as pessoas e de receber credibilidade de colegas de trabalho, amigos em geral, e pelas vivências do cotidiano marcadas por olhares, comportamentos, falas, insinuações. Caso não haja acolhimento dessa narrativa, perde-se o bem mais precioso, o ser humano.

      Temos a intenção (por que não?) de ser uma semente que possa ampliar a consciência sobre as entranhas em que estão embasadas a desigualdade social e econômica e a hierarquia racial, tendo como alvo o compromisso clínico dos profissionais por meio da consciência dessa realidade histórico-social e sua repercussão psíquica e corporal. Na transformação do nosso cotidiano, que possamos ser governados pelo amor solidário, pelo senso crítico, pelo conhecimento reflexivo diante de uma cultura que nos transpassa, pelo prazer consciente e pelo contentamento nas mais variadas atividades.

      7 “For who can be truly human under the weigt of opression that condemns them to a life of torment, robs them of a future, and saps their free will? Moreover, who can become truly human when they gain so much from the pain and suffering of those whom they opress and/or take advantage of?” (DEGRUY, 2017, p. IV, Prologue).

      2

      HISTÓRIA COLONIAL E ESCRAVIZAÇÃO NO BRASIL

      Ninguém ouviu

      Um soluçar de dor

      No canto do Brasil

      Um lamento triste

      Sempre ecoou

      Desde que o índio guerreiro

      Foi pro cativeiro

      E de lá cantou

      Negro entoou

      Um canto de revolta pelos ares

      No Quilombo dos Palmares

      Onde se refugiou

      Fora a luta dos Inconfidentes

      Pela quebra das correntes

      Nada adiantou

      E de guerra em paz

      De paz em guerra

      Todo o povo dessa terra

      Quando pode cantar

      Canta de dor

      E ecoa noite e dia

      É ensurdecedor

      Ai, mas que agonia

      O canto do trabalhador

      Esse canto que devia

      Ser um canto de alegria

      Soa apenas

      Como um soluçar de dor

      (Canto das Três Raças, Mauro Duarte e Paulo Cesar Pinheiro; intérprete Clara Nunes, 1976)

      Para conhecimento e compreensão da nação brasileira e de seus habitantes, faz-se necessário conhecer sua história e como ela foi constituída. Saber quais foram as primeiras percepções sobre esse Novo Mundo, a construção de um imaginário sobre a terra e os povos originários, sua formação social com a colonização europeia inicial (portuguesa, holandesa e francesa) e o regime de trabalho escravo, bem como os sistemas de governo e as transições políticas, econômicas, a mistura de culturas e costumes que influenciaram sua identidade. Considerar a hierarquização vertical nas relações raciais (indígenas, brancos e negros), suas condições subjetivas e simbólicas. E fundamentalmente o silêncio, tentativas de esquecimento, negando sua própria realidade e a amplitude das consequências desastrosas e estruturantes dessa escolha deste país na vida política, social e psíquica até os tempos atuais.

      Somos seres humanos; nossas histórias e trajetórias não podem ser esquecidas, precisam ser resgatadas para ressignificação e valorização do lugar que ocupamos na sociedade. Os negros e os indígenas são os que mais sofrem com a escolha deliberada desse esquecimento, com a desqualificação de povos, o extermínio de etnias e a não demarcação de suas terras. Negros e povos originários desta terra constroem o país até hoje com sua força, seus braços, seus conhecimentos, na luta pela preservação ambiental. Com um recente passado ainda presente, estamos todos traumatizados com a devastação provocada pela violência da colonização e do tráfico humano, e pela guerra constante pelo direito à terra e à sobrevivência.

      “Nus estão os homens e as mulheres.” [....] Foi, aliás, outro cronista, o português Pedro Gândavo, que sintetizou tal

Скачать книгу