Olhos negros atravessaram o mar. Maria Cristina Francisco
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De ambos os lados não estamos neutros; estamos todos envolvidos no mesmo enredo. Ao recebermos uma pessoa de cor de pele na qual se evidencia a miscigenação com descendentes do continente africano, nosso imaginário se apresenta; somos atingidos pelos nossos registros internos, pela nossa história pessoal e social. É importante olhar, ter clareza disso e não fugir desse imaginário construído, carregado de preconceitos. O inconsciente dos presentes, cliente e terapeuta / analisando e analista, estará dentro do campo psicoterapêutico. Num país racializado, as dimensões da diversidade, singularidade, especificidade e subjetividade estão memorizadas pelas experiências. O corpo do profissional deveria estar receptivo para qualificar sua escuta, compreendendo o lugar relacional que ocupa a fim de dar abertura e credibilidade ao espaço para que se desvele a presença das experiências perversas das tramas do racismo.
“Decifra-me ou te devoro”, desafio da Esfinge de Tebas: nos relatos verbais, nos gestos, nas atitudes, tentamos decifrar o enigma que devora a identidade, mina as forças e a possibilidade de sucesso daquele que vive a crueldade do racismo. Conhecer a si mesmo para não ser refém de suas emoções e crenças é premissa para libertar-se das armadilhas, do modo de reprodução e das percepções distorcidas em que estamos todos enredados. O racismo está carregado de nuances de sofisticação e perversidade construídas à medida que o tempo passa; ele se atualiza nos mais diversos ambientes, relacionamentos familiares, de amizade e profissionais, reproduzindo a hierarquia de poder, o preconceito e a discriminação.
Na prática clínica, notamos os efeitos psíquicos que atravessam o corpo da pessoa negra frente ao racismo. Na fala, sempre há um lugar de solidão, raiva, exaustão, tensão por estar alerta constantemente, por não saber o que virá no contato com outro, pela dificuldade de compartilhar com as pessoas e de receber credibilidade de colegas de trabalho, amigos em geral, e pelas vivências do cotidiano marcadas por olhares, comportamentos, falas, insinuações. Caso não haja acolhimento dessa narrativa, perde-se o bem mais precioso, o ser humano.
Temos a intenção (por que não?) de ser uma semente que possa ampliar a consciência sobre as entranhas em que estão embasadas a desigualdade social e econômica e a hierarquia racial, tendo como alvo o compromisso clínico dos profissionais por meio da consciência dessa realidade histórico-social e sua repercussão psíquica e corporal. Na transformação do nosso cotidiano, que possamos ser governados pelo amor solidário, pelo senso crítico, pelo conhecimento reflexivo diante de uma cultura que nos transpassa, pelo prazer consciente e pelo contentamento nas mais variadas atividades.
7 “For who can be truly human under the weigt of opression that condemns them to a life of torment, robs them of a future, and saps their free will? Moreover, who can become truly human when they gain so much from the pain and suffering of those whom they opress and/or take advantage of?” (DEGRUY, 2017, p. IV, Prologue).
2
HISTÓRIA COLONIAL E ESCRAVIZAÇÃO NO BRASIL
Ninguém ouviu
Um soluçar de dor
No canto do Brasil
Um lamento triste
Sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro
Foi pro cativeiro
E de lá cantou
Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
No Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou
Fora a luta dos Inconfidentes
Pela quebra das correntes
Nada adiantou
E de guerra em paz
De paz em guerra
Todo o povo dessa terra
Quando pode cantar
Canta de dor
E ecoa noite e dia
É ensurdecedor
Ai, mas que agonia
O canto do trabalhador
Esse canto que devia
Ser um canto de alegria
Soa apenas
Como um soluçar de dor
(Canto das Três Raças, Mauro Duarte e Paulo Cesar Pinheiro; intérprete Clara Nunes, 1976)
Para conhecimento e compreensão da nação brasileira e de seus habitantes, faz-se necessário conhecer sua história e como ela foi constituída. Saber quais foram as primeiras percepções sobre esse Novo Mundo, a construção de um imaginário sobre a terra e os povos originários, sua formação social com a colonização europeia inicial (portuguesa, holandesa e francesa) e o regime de trabalho escravo, bem como os sistemas de governo e as transições políticas, econômicas, a mistura de culturas e costumes que influenciaram sua identidade. Considerar a hierarquização vertical nas relações raciais (indígenas, brancos e negros), suas condições subjetivas e simbólicas. E fundamentalmente o silêncio, tentativas de esquecimento, negando sua própria realidade e a amplitude das consequências desastrosas e estruturantes dessa escolha deste país na vida política, social e psíquica até os tempos atuais.
Somos seres humanos; nossas histórias e trajetórias não podem ser esquecidas, precisam ser resgatadas para ressignificação e valorização do lugar que ocupamos na sociedade. Os negros e os indígenas são os que mais sofrem com a escolha deliberada desse esquecimento, com a desqualificação de povos, o extermínio de etnias e a não demarcação de suas terras. Negros e povos originários desta terra constroem o país até hoje com sua força, seus braços, seus conhecimentos, na luta pela preservação ambiental. Com um recente passado ainda presente, estamos todos traumatizados com a devastação provocada pela violência da colonização e do tráfico humano, e pela guerra constante pelo direito à terra e à sobrevivência.
Estima-se que viviam em torno de oito a quarenta milhões de habitantes em nosso território; algumas tribos com uma história de 2000 a 3000 anos e os guaranis tendo em torno de 4000 anos na compreensão de si como povo. Habitavam aqui mais de mil povos, em sociedades complexas e estratificadas; falavam diferentes línguas e tinham diferentes culturas (AS GUERRAS DA CONQUISTA, 2018)8. Entre 1516 e 1557, durante a chegada invasiva dos europeus a este território, as primeiras impressões do contato desses povos com os nativos foram carregadas de um olhar distorcido em relação a essa outra cultura e comportamentos, desconhecidos pelo branco. Alguns relatos revelam o encantamento com um lugar percebido como paradisíaco, mas também a estranheza com relação aos costumes do povo nativo, os verdadeiros donos das terras.
“Nus estão os homens e as mulheres.” [....] Foi, aliás, outro cronista, o português Pedro Gândavo, que sintetizou tal