Olhos negros atravessaram o mar. Maria Cristina Francisco

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Olhos negros atravessaram o mar - Maria Cristina Francisco

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suposto era que os habitantes deste Novo Mundo – que só era “novo” em relação à designação que os europeus deram a si próprios, como habitantes de um Velho Mundo – eram “outros” e apreendidos pela “falta”. Nesse caso, a diferença não era sinal de mais, e sim de menos, pois implicava a carência de costumes, de ordem e responsabilidade. Foi assim que hábitos como o canibalismo, a poligamia ou a nudez incendiaram a imaginação europeia, que migrava do Oriente para a América maravilhada com os trópicos, porém avessa a essa que seria uma nova humanidade, mas já decaída de costumes.

      [....] Em 1534, Paulo III estabelecia uma bula papal que confirmava a “humanidade” dos nativos do Novo Mundo e lhes conferia “alma”. Mas a desconfiança se mantinha e os nativos brasileiros seriam motivo para todo tipo de teoria (SCHWARCZ, 2018, p. 403-404).

      Nos diversos territórios ocupados fora da Europa, os relatos históricos foram feitos por brancos que, muitas vezes, sustentavam as versões que lhes convinham, brancos intelectuais que propagavam versões sobre o povo negro. O povo negro comporia, em sua visão, certos aspectos negativos, como inferioridade intelectual, serem feiticeiros, de beleza inferior e outros desqualificativos. Inicia-se, assim, o processo de construção de uma ideologia universal da brancura. O homem europeu, olhando para si diante do espelho, narcisicamente constrói a ideia do branco como tendo o sentido universal de humanidade, civilização, razão, desenvolvimento cultural, religião, ciência, beleza, tecnologia – correspondendo em termos psicanalíticos ao Ego e ao Superego - e uma determinada ideia do outro (o indígena, o asiático e o negro) como tendo o sentido específico, como um corpo sensualizado, instintivo, profano, emocional, selvagem – correspondendo ao Id.

      No entanto, para sermos justos, a história deveria ter três versões. Abaixo estão impressões do povo africano, apresentando no mínimo estranheza ao avistar as caravelas europeias:

      [....] Quem olhasse da praia uma caravela, bem podia tê-la, com efeito, por um grande pássaro pousado no oceano, as duas velas latinas a simularem asas.

      [....] De perto, os forasteiros não diferiam muito dos árabes e dos berberes azenegues do Saara: o mesmo cabelo liso e longo, o mesmo nariz comprido, os mesmos lábios estreitos e uma pele ainda mais desbotada. Quase tão desbotada quanto a dos albinos. A sua cor mais assemelhava à dos espíritos, que são brancos, do que à de gente viva. [....] E como cheiravam mal os que desciam dos escaleres para a praia! O branco fedia a defunto – fede a carne podre até hoje. Naquela época, quando só raramente se banhavam – e quase nunca nos barcos -, o mau odor dos portugueses devia ser acentuado pelas roupas pesadas, que, nos marinheiros e soldados, não se trocavam desde o início da viagem. As condições higiênicas nos navios eram mais do que precárias: os seus cascos tresandavam a urina, fezes, inhaca, ratos mortos e comida estragada, e seus tripulantes vinham cheios de pulgas e piolhos (SILVA, 2002, p. 149).

      Transcrevo abaixo o discurso do indígena, historiador e filósofo Ailton Krenak, no episódio “As guerras da conquista” do documentário já citado, sobre os primeiros contatos entre os povos originários do Brasil com a chegada dos europeus:

      Os povos têm suas referências, práticas e entendimento, e sua maneira própria de transmissão de valores. O conhecimento do povo africano se faz tradicionalmente pela transmissão oral, conhecida como Griot ou Griotte (no caso de mulheres) – pessoa, contador de histórias, conhecido por sua sabedoria e transmissão de conhecimento (canções, lendas, mitos) (LIMA; NASCIMENTO; OLIVEIRA, 2009). Os povos indígenas também se utilizam dessa técnica oral para transmissão de conhecimento, contando sobre as aventuras dos antepassados ao se reunirem de maneira interativa e imaginativa, formando futuros adultos.

      Na colonização, tudo isso é desconsiderado. Conduz-se o corpo para o lugar de produção e mão-de-obra, entretanto estando os brancos cientes de que muitos escravizados eram sabedores da riqueza das matas (indígenas) e que alguns povos da África dominavam a técnica da mineração, eram letrados e comerciantes. Os senhores dos engenhos e mineração, no momento da compra, levavam essas qualidades em consideração e posteriormente se apropriavam desse conhecimento, expropriando o saber do verdadeiro conhecedor.

      Podemos verificar um resultado dessa narrativa enviesada sobre o povo negro, esse outro já de início desqualificado, em algumas elaborações do pensamento ocidental. Machado e Loras (2017), por exemplo, citam Immanuel Kant, um dos principais filósofos da Era Moderna, para evidenciar o eurocentrismo desse filósofo e, claro, todo o parecer moral sobre o que está fora da universalidade da beleza e inteligência (a do branco). Trata-se de uma citação da obra Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, de 1764:

      Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um negro tenha mostrado talentos e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontraram um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte, ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos, constantemente se arrojam aqueles que, saídos da plebe mais baixa adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é, portanto, a diferença entre essas duas raças humanas, a qual parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores. A religião do fetiche, tão difundida entre eles, talvez seja uma espécie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo quanto parece possível à natureza humana (KANT, 1993 apud MACHADO; LORAS, 2017, p. 18-19).

      No entanto, uma questão importante se coloca: por que traficar e explorar pessoas? Normalmente, a resposta é econômica: o mercado capital sobre a necessidade humana. O termo “economia” vem do grego oikos (casa) e nomos (costume ou lei); logo, economia teria o significado original de satisfazer as necessidades da casa. Os recursos da Europa estavam limitados e as necessidades eram cada vez mais ilimitadas, seja pelo crescimento populacional, seja pelo desejo de elevação do padrão de vida. Era preciso abastecer esse continente com matéria-prima para o mercado. Para encontrar e explorar novos territórios, conseguir especiarias e localizar pedras preciosas (ouro, diamante) para a mineração e para a agricultura, seria necessário obter mão-de-obra.

      Com o pioneirismo de Portugal, a África passou a ser um local para fornecer esse produto de comércio, os corpos negros (adquiridos, vendidos, arrendados ou herdados), pois os portugueses tinham contato com o continente africano desde o século XIV. Eles foram responsáveis pelo tráfico da maioria dos 12 milhões escravizados. Só no Brasil chegou a quase metade de todo o comércio do corpo humano, mudando drasticamente a realidade da vida e costumes, desenraizando o nativo do seu habitat.

      Resquícios desse passado se apresentam em nosso presente, de maneira que a pessoa negra, mesmo nascida no Brasil nos tempos de hoje, passa a se sentir um estranho, alguém a quem foi negado seu espaço, sua voz, melhor dizendo, foi instituído, sim, um lugar, mas de subalternidade. Eis um relato de uma pessoa negra: “Meu lugar é da indigência, como se eu não existisse, tenho vergonha”.

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