Romancistas Essenciais - Joaquim Manuel de Macedo. Joaquim Manuel de Macedo

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Romancistas Essenciais - Joaquim Manuel de Macedo - Joaquim Manuel de Macedo Romancistas Essenciais

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e não fosse ligeiro e experiente se expunha a ser apanhado pelas ondas, que rebentavam com força, então.

      Eu vi a travessa menina hesitar longo tempo entre o desejo de possuir a concha e o receio de ser molhada pelas vagas; depois pareceu haver tomado uma resolução: o capricho de criança tinha vencido. Com suas lindas mãozinhas arregaçou o vestido até aos joelhos, e quando a onda recuou, ela fez um movimento, mas ficou ainda no mesmo lugar, inclinada para diante e na ponta dos pés: segunda, terceira, quarta, quinta onda, e sempre a mesma cena de ataque e receio do inimigo. Finalmente, ao refluxo da sexta, ela precipitou-se sobre a concha; mas a areia escorregou debaixo de seus pés e a interessante menina caiu na praia, sem risco e com graça: erguendo-se logo e, espantada ao ver perto de si a nova onda, que desta vez vinha mansa e fraca como respeitosa, correu para trás e sem o pensar atirou-se nos meus braços, exclamando:

      — Ah!... Eu ia morrer afogada!...

      Depois, vendo-se com o vestido cheio de areia, começou a rir-se muito, sacudindo-o e dizendo ao mesmo tempo:

      — Eu caí! Eu caí!...

      E como se não bastasse esta passagem rápida do susto para o prazer, ela olhou de novo para o mar, e tornando-se levemente melancólica, balbuciou com voz pesarosa, apontando para a concha:

      — Mas... a minha concha!...

      Ouvindo a sua voz harmoniosa e vibrante, eu não quis saber de fluxos nem refluxos de ondas; corri para elas com entusiasmo e, radiante de prazer e felicidade, apresenteime à linda menina, embora um pouco molhado, mas trazendo a concha desejada.

      Este acontecimento fez-nos logo camaradas. Corremos a brincar juntos com toda essa confiança infantil que só pode nascer da inocência e que ainda em parte se dava em mim, posto que já esse tempo fosse eu um pouco velhaquete e sonso, como um estudante de latim que era, e por tal já procurava minhas blasfêmias no dicionário.

      É sempre digno de observar-se esta tendência que têm as calças para o vestido! Desde a mais nova idade e no mais inocente brinquedo aparece o tal mútuo pendor dos sexos... e de mistura umas vergonhas muito engraçadas...

      Eu cá sempre fui assim; quando brincava o tempo-sera, por exemplo, sempre preferia esconder-me atrás das portas com a menos bonita de minhas primas, do que com o mais formoso de meus amigos de infância.

      Mas, como ia dizendo, nós brincamos juntos, corríamos e caíamos na areia, e depois ríamos ambos de nós mesmos. Tínhamos esquecido todo o mundo, e pensávamos somente em nos divertir, como os melhores amigos.

      Depois de uma agradável hora passada em mil diversas travessuras, que nossa imaginação e inconstância de meninos modificava e inventava a cada momento, a minha interessante camarada voltou-se de repente para mim, e perguntou:

      — Sou bonita, ou feia?...

      Eu quis responder-lhe mil coisas... corei... e finalmente murmurei tremendo:

      — Tão bonita!...

      — Pois então, tornou-me ela, quando formos grandes, havemos de nos casar, sim?

      — Oh!... Pois bem!...

      — Havemos, continuou o lindo anjinho de oito anos, eu o quero... Olhe, o meu primo Juca me queria também, mas ainda ontem me quebrou a minha mais bonita boneca... Ora, o marido não deve quebrar as bonecas de sua mulher!... Eu quero, pois, me casar com o senhor, que há de apanhar bonitas conchinhas para mim... Além disso ele não tem, como o senhor, os cabelos louros nem a cor rosada...

      — Porém eu gosto mais dos cabelos pretos...

      — Melhor!... Melhor!... exclamou a menina, saltando de prazer. Olhe: os meus são pretos!

      E nisto ela puxou com a sua pequena mãozinha um de seus belos anéis da madeixa, para mostrar-mo, e largando-o depois, eu vi cair outra vez em seu pescoço, de novo torcido como um caracol.

      Ainda corremos mais e continuamos a brincar juntos; e, sem o pensar, nós nos esquecemos de procurar saber os nossos verdadeiros nomes, porque nos bastavam esses com que já nos tratávamos, de:meu marido, minha mulher!

      A viveza, a graça e o espírito da encantadora menina tinham feito desaparecer meu natural acanhamento; nós estávamos como dois antigos camaradas, quando fomos interrompidos em nossas travessuras por um outro menino que para nós corria chorando.

      — O que tem? perguntamos ambos.

      — E meu pai que morre! exclamou ele, apontando para uma casinha que avistamos algumas braças distante de nos.

      Ficamos um momento tristemente surpreendidos; depois, como dominados pelo mesmo pensamento, ela e eu dissemos a um tempo:

      — Vamos lá.

      E corremos para a pequena casa.

      Entramos. Era um quadro de dor e luto que tínhamos ido ver. Uma pobre velha e três meninos, mal vestidos e magros, cercavam o leito em que jazia moribundo um ancião de cinqüenta anos, pouco mais ou menos. Pelo que agora posso concluir, uma síncope havia causado todo o movimento, pranto e desolação que observamos. Quando chegamos ao pé de seu leito, ele tornava a si.

      — Ainda não morri, balbuciou, olhando com ternura para seus filhos, e deixando cair dos olhos grossas lágrimas. Depois, deparando conosco, continuou:

      — Quem são estes dois meninos?...

      Ninguém lhe respondeu, porque todos choravam, sem excetuar a minha bela camarada e eu.

      — Não chorem ao pé de mim, exclamou o velho, sufocado em pranto e escondendo o rosto entre as mãos, enquanto seus três filhos e o quarto que tínhamos há pouco visto fora, se atiravam sobre ele, no excesso da maior, da mais nobre e da mais sublime das dores.

      A minha camarada dirigiu-se então à velha.

      — O que tem então ele?... perguntou com viva demonstração de interesse.

      — Oh, meus meninos, respondeu a aflita velha, ele sofre uma enfermidade cruel, mas

      que poderia não ser mortal... porém e pobre!... E morre mais depressa pelo pesar de deixar seus filhos expostos à fome!... Morre de miséria!... Morre de fome!...

      — Fome! exclamamos com espanto; fome! pois também morre-se de fome?...

      E instintivamente a minha interessante companheira tirou do bolso do seu avental uma moeda de ouro e, dando-a à velha, disse:

      — Foi meu padrinho que ma deu hoje de manhã... eu não preciso dela... não tenho fome.

      E eu tirei do meu bolso uma nota, não me lembro de que valor, e por minha vez a entreguei, dizendo:

      — Foi minha mãe que ma deu e ela me dá um abraço, sempre que faço esmolas aos pobres.

      Não é possível descrever o que se passou então naquela miserável choupana. Minha linda mulher e eu tivemos de ser abraçados mil vezes, de ver de joelhos a nossos pés a velha e os meninos... Finalmente nós nos aproximamos dele, que nos apertou com entusiasmo contra o coração.

      — Quem sois? pôde, enfim, dizer; quem sois?

      —

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