Romancistas Essenciais - Joaquim Manuel de Macedo. Joaquim Manuel de Macedo
Чтение книги онлайн.
Читать онлайн книгу Romancistas Essenciais - Joaquim Manuel de Macedo - Joaquim Manuel de Macedo страница 4
É inútil descrever o quarto de um estudante: aí nada se encontra de novo. Ao muito acharão uma estante, onde ele guarda os seus livros, um cabide, onde pendura a casaca, o moringue, o castiçal, a cama, uma até duas canastras de roupa, o chapéu, a bengala e a bacia, a mesa, onde escreve e que só apresenta de recomendável a gaveta cheia de papéis, de cartas de família, de flores e fitinhas misteriosas: é pouco mais ou menos assim o quarto de Augusto.
Agora ele está só. Às sete horas, desse quarto saíram três amigos: Filipe, Leopoldo e Fabrício. Trataram da viagem para a ilha de... no dia seguinte e retiraram-se descontentes, porque Augusto não se quis convencer de que deveria dar um ponto na clínica para ir com eles ao amanhecer. Augusto tinha respondido: Ora vivam! Bem basta que eu faça gazeta na aula de partos; não vou senão às dez horas do dia.
E, pois despediram-se amuados. Fabrício queria ainda demorar-se e mesmo ficar com Augusto, mas Leopoldo e Filipe o levaram consigo à força. Fabrício fez-se acompanhar do moleque que servia Augusto, porque, dizia ele, tinha um papel de importância a mandar.
Eram dez horas da noite, e nada de moleque. Augusto via-se atormentado pela fome, e Rafael, o seu querido moleque, não aparecia... o bom Rafael, que era ao mesmo tempo o seu cozinheiro, limpa-botas, cabeleireiro, moço de recados e... e tudo mais que as urgências mandavam que ele fosse.
Com justa razão, portanto, estava cuidadoso Augusto, que de momento a momento exclamava:
Vejam isto! ... Já tocou a recolher e Rafael está ainda na rua! Se cai nas unhas de algum beleguim, não é decerto o sr. Fabrício quem há de pagar as despesas da Casa de Correção... Pobre do Rafael! Que cavaco não dará quando lhe raparem os cabelos!
Mas neste momento ouviu-se tropel na escada... Era Rafael, que trazia uma carta de Fabrício, e que foi aprontar o chá, enquanto Augusto lia a carta. Ei-la aqui:
"Augusto. Demorei o Rafael porque era longo o que tenho de escrever-te. Melhor seria que eu te falasse, porém bem viste a impertinência de Filipe e Leopoldo. Felizmente, acabam de deixar-me. Que macistas!... Principio por dizer-te que te vou pedir um favor, do qual dependerá o meu prazer e sossego na ilha de... Conto com a tua amizade, tanto mais que foram os teus princípios que me levaram aos apuros em que ora me vejo. Eis o caso".
Tu sabes, Augusto, que, concordando com algumas de tuas opiniões a respeito de amor, sempre entendi que uma namorada é traste tão essencial ao estudante, como o chapéu com que se cobre ou o livro com que estuda. Concordei mesmo algumas vezes em dar batalha a dois e três castelos a um tempo; porém tu não ignoras que a semelhante respeito estamos discordes no mais: tu és ultra-romântico e eu ultraclássico.
O meu sistema era este:
1º Não namorar moça de sobrado. Daqui tirava eu dois proveitos, a saber: não pagava o moleque para me levar recados e dava sossegadamente, e a mercê das trevas, meus beijos por
entre os postigos das janelas.
2º Não requestar moça endinheirada. Assim eu não ia ao teatro para vê-la, nem aos bailes para com ela dançar, e poupava meus cobres.
3º Fingir e ficar mal com a namorada em tempos de festas e barracas no campo. E por tal modo livrava-me de pagar doces, frutas e outras impertinências.
Estas eram as bases fundamentais do meu sistema.
Ora, tu te lembrarás que bradavas contra o meu proceder como indigno da minha categoria de estudante; e, apesar de me ajudares a comer saborosas empadas, quitutes apimentados e finos doces, com que as belas pagavam por vezes a minha assiduidade amantética, tu exclamavas:
— Fabrício! Não convêm tais amores ao jovem de letras e de espírito. O estudante deve considerar o amor como um excitante que desperte e ateie as faculdades de sua alma: pode mesmo amar uma moça feia e estúpida, contanto que sua imaginação lha represente bela e espirituosa. Em amor a imaginação é tudo: é ardendo em chamas, é elevado nas asas de seus delírios que o mancebo se faz poeta por amor.
Eu então te respondia:
— Mas quando as chamas se apagam, e as asas dos delírios se desfazem, o poeta não tem, como eu, nem quitutes nem empadas.
E tu me tornavas:
— E porque ainda não experimentaste o que nos prepara o que se chama amor platônico, paixão romântica! Ainda não sentiste como é belo derramar-se a alma toda inteira de um jovem na carta abrasadora que escreve à sua adorada, e receber de troco uma alma de moça, derramada toda inteira em suas letras, que tantas mil vezes se beijam.
Ora, esses derramamentos de alma bastante me assustavam; porque eu me lembro que em patologia se trata mui seriamente dos derramamentos.
Mas tu prosseguias:
— E depois, como é sublime deitar-se o estudante no solitário leito e ver-se acompanhado pela imagem da bela que lhe vela no pensamento, ou despertar ao momento de ver-se em sonhos sorvendo-lhe nos lábios voluptuosos beijos!
A inda estes argumentos não me convenciam suficientemente, porque eu pensava: 1.° que essa imagem que vela no pensamento não será a melhor companhia possível para um estudante, principalmente quando ela lhe velasse na véspera de alguma sabatina; 2.° porque eu sempre acho muito mais apreciável sorver os beijos voluptuosos por entre postigos de uma janela, do que sorvê-los em sonhos e acordar com água na boca: beijos por beijos, antes os reais que os sonhados.
Além disto, no teu sistema nunca se fala em empadas, doces, petiscos etc; no meu eles aparecem e tu, apesar de romântico, nunca viraste as costas nem fizeste ma cara a esses despojos de minhas batalhas.
Mas, enfim, maldita curiosidade de rapaz!... Eu quis experimentar o amor platônico, e dirigindo-me certa noite ao teatro São Pedro de Alcântara, disse entre mim: esta noite hei de entabular um namoro romântico.
Entabulei-o, sr. Augusto de uma figa!... Entabulei-o, e quer saber como?... Saí fora do meu elemento e espichei-me completamente. Estou em apuros.
Eis o caso:
Nessa noite fui para a superior; eu ia entabular um namoro romântico; não podia ser de outro modo. Para ser tudo à romântica consegui entrar antes de todos; fui o primeiro a sentar-me quando ainda o lustre monstro não estava aceso; vi--o descer e subir depois, ornado e brilhante de luzes, vi se irem enchendo os camarotes; finalmente eu, que tinha estado no vácuo, achei-me no mundo: o teatro estava cheio. Consultei com meus botões como devia principiar, concluí que, para portar-me romanticamente, deveria namorar alguma moça que estivesse na quarta ordem. Levantei os olhos, vi uma que olhava para o meu lado, e então pensei comigo mesmo: seja aquela!... Não sei se é bonita ou fria, mas que importa? Um romântico não cura dessas futilidades. Tirei, pois, da casaca o meu lenço branco, para fingir que enxugava o suor, para abanar-me e enfim para fazer todas essas macaquices que eu ainda ignorava que estavam condenadas pelo Romantismo. Porém, oh infortúnio!... Quando de novo olhei para o camarote, a moça tinha-se voltado completamente para a tribuna; tossi, tomei tabaco, assoei-me, espirrei e a pequena... nem caso; parecia que o negócio com ela não era. Começou a ouverture e nada; levantou-se o pano, e ela voltou os olhos para a cena, sem olhar para o meu lado. Representou-se o 1º ato... Tempo perdido. Veio o pano finalmente abaixo.
— Agora sim, começará o nosso telégrafo a trabalhar, disse eu comigo mesmo, erguendo-me para tornar-me mais saliente.
Porém,