Anuario iberoamericano de regulación. Varios autores
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Esta pergunta possui dois ângulos muito importantes de análise: qual é o significado do conceito de serviço público (e suas respectivas consequências) e como poderia ser imaginado um regime regulatório de autorização para a construção de aeroportos voltados ao público em geral sob o regime de autorização.
O debate se torna especialmente relevante nos contornos atuais do mercado brasileiro. Depois de uma década de intensos investimentos impulsionados por rodadas de concessões à iniciativa privada, começa-se a vislumbrar o esgotamento da capacidade de infraestruturas aeroportuárias em certas regiões do País, donde se torna imperioso o planejamento em novos investimentos.
Nesse passo, coloca-se a dúvida acerca da legitimidade de iniciativa para a realização desses novos investimentos. Seria apenas estatal a iniciativa de novos investimentos, interditando-se que agentes privados pudessem desenhar, implantar e operar, por sua iniciativa, aeroportos, em um cenário claro de serviço público. Ou, em sentido contrário, haveria a possibilidade de privados idealizarem novos projetos e conduzirem sua operação, apenas por meio de autorizações outorgadas pelo Estado.
Ao que me parece claro, havendo a satisfação dos direitos fundamentais dos cidadãos por meio de projetos sujeitos ao regime de serviço público, seria perfeitamente possível que novos projetos emergissem e fossem explorados exclusivamente por agentes privados. É dizer, o papel a ser cumprido pelo Estado –e pelo serviço público– é a cobertura das necessidades sociais mais prementes, as quais, uma vez satisfeitas, poderiam passar a estar incluídas em um contexto de competição de mercado regular. Não vejo qualquer papel de monopólio assegurado pela ideia de serviço público. O que vemos, sim, é necessidade de satisfação de demandas da população.
Portanto, parece-me claramente possível o delineamento de um modelo jurídico-institucional cabível no direito brasileiro e capaz de viabilizar a construção do aeroporto privado, não apenas no que tange à propriedade do ativo, como também quanto no que concerne ao regime jurídico de exploração e ao regime de iniciativa de implantação.
E, para fazê-lo, é essencial revistar os conceitos jurídicos de serviço público e de autorização para testar sua aplicabilidade ao caso concreto, delineando como poderia ser criada uma autorização regulatória cabível para o setor de aeroportos e as razões pelas quais o conceito proposto é adequado ao direito brasileiro.
I. SERVIÇO PÚBLICO E MERCADO
Historicamente, a ideia de serviço público foi vista como impeditiva da existência de condições de livre mercado. Em alguns países, como França, Itália e vários da Iberoamérica, o serviço público não poderia ser sujeito a um regime livre de mercado por questões eminentemente jurídicas, dado que seria atividade organicamente afeta ao Estado e sujeita a um regime jurídico especial de Direito Público1. Em outros países, como Reino Unido e Alemanha, os serviços públicos foram retirados da livre iniciativa de mercado em função da utilização de um mecanismo de monopólio estatal de regulação, em que as falhas de mercado existentes em diversos serviços seriam corrigidas pela monopolização da atividade por entidades públicas.
Essa realidade perdurou por quase um século, até que, em fins dos anos de 1980, começou-se um amplo processo de revisão, destinado a analisar os benefícios e os custos da liberalização dos mercados de serviços públicos. Tal processo inicia-se no âmbito da União Europeia e rapidamente alastra-se para os países da América Latina.
O motivo propulsor desse processo de revisão decorre de dois fatores fundamentais: o esgotamento de recursos públicos para investimento na oferta e na expansão dos serviços públicos, notadamente no caso do Reino Unido e dos países latinos (tanto europeus, quanto americanos) e os benefícios que poderiam advir da inserção de concorrência nos mercados monopólicos dos serviços públicos, sobretudo em função da necessidade de busca por maior eficiência, obrigatoriedade de redução de custos, necessidade de melhoria na qualidade etc.
Assim é que, a partir da década de 1990, inicia-se um amplo processo de revisão do conceito e do regime jurídico dos serviços públicos, colocando-se em questionamento se o conceito de atividade estatal, sujeita a um regime jurídico específico e afastador da livre iniciativa privada permaneceria existindo. Em alguns casos mais extremos, chegou-se até mesmo a cogitar a morte do serviço público, por meio da sua substituição por outros mecanismos, como o serviço econômicos de interesse geral2.
Inobstante, o que, de facto, ocorreu não foi a morte do serviço público, mas sua simples revisão. As atividades que eram consideradas, de fato e/ou de direito, monopólios estatais passaram a ser vistas como atividades econômicas com algumas especificidades, passíveis, pois, de exploração em regime de mercado, com a incidência do maior grau possível de concorrência, a fim de melhorar sua oferta para a coletividade.3
A regra que antes era o monopólio passou a ser a concorrência. Ressalvadas hipóteses especiais, em que a concorrência pudesse ser prejudicial ao alcance da finalidade da atividade, deve o serviço ser prestado em regime de concorrência. Passa a haver um sobrevalor à ideia de proporcionalidade, a partir da qual somente se pode restringir a livre iniciativa e a livre concorrência na exata medida do proporcional e do necessário para se alcançar uma finalidade de interesse coletivo consistente na oferta da atividade4.
Se na União Europeia essa transformação deu-se a partir do conteúdo do antigo artigo 86 (atual artigo 101) do Tratado de Constituição da União Europeia, no Brasil houve que se dar a partir da aplicação, aos serviços públicos, das determinações expressas contidas nos artigos 170 (caput e inciso IV), 173 (§ 4º) e 177, os quais impõem à toda evidência que a regra é a concorrência em todas as atividades econômicas5.
Não obstante a necessidade de abertura das atividades para a concorrência e o livre mercado, nunca se pôde descurar que muitas das atividades consideradas serviços públicos têm alguma falha de mercado, decorrente, principalmente, da existência de monopólios naturais6 em alguma etapa de sua cadeia produtiva. Por conseguinte, a abertura das atividades para o livre mercado e a livre concorrência não poderia se dar de forma completa, sem qualquer forma de intervenção do Estado. A regulação antes desempenhada por meio do monopólio deveria passar a ser realizada por outras formas de intervenção do Estado no mercado, voltada a mitigar os efeitos de tais falhas de mercado.
Nesse passo, a abertura dos serviços públicos a um regime aberto de mercado pressupôs duas ações fundamentais: (i) a redução das barreiras de entrada no mercado e (ii) uma ação estatal corretiva, pela via normativa e comportamental, destinada a mitigar os efeitos negativos dos monopólios naturais existentes.
No que se refere à primeira ação, houve uma profunda revisão dos conceitos de reserva originária, monopólio estatal e demais correlatos, admitindo-se, aprioristicamente, que a atividade poderia comportar mais do que um agente prestador, agindo em regime de concorrência – ressalvadas, claro, as hipóteses em que a concorrência possa ser perniciosa para o alcance das finalidades da atividade. Via de consequência, independentemente de o agente prestador do serviço público ser estatal ou privado, determinou-se a possibilidade de ingresso no mercado de outros agentes competidores.
Isso implicou uma quebra de paradigma na concepção de que os mercados de serviço público somente eram alcançáveis pelo Estado ou sua entidade prestadora, ou por concessionários que recebiam